Um país refém dos caminhões

Um país refém dos caminhões

janeiro 29, 2021 Off Por JJ

Em 1852, Irineu Evangelista de Sousa, futuro Barão de Mauá, reuniu as autoridades do império para sedimentar a primeira obra ferroviária no Brasil: uma estrada de ferro ligando o Rio de Janeiro a Petrópolis.

De forma simbólica, Sousa entregou a Dom Pedro II uma pá de prata com cabo de jacarandá, para que o imperador fizesse a primeira abertura de terra no local onde a estrada seria construída.

Algumas histórias sugerem de que a homenagem teria desagradado o imperador. Afinal, trabalho pesado era visto como algo menor, delegado aos escravos. Ainda assim, o ato de Sousa fez com que o imperador lhe concedesse o título de barão.

Ao contrário de outros nobres brasileiros que incluíam símbolos indígenas e produtos agrícolas em seus brasões, Mauá escolheria uma locomotiva como seu emblema.

Mas, desde então, as ferrovias viveram altos e baixos na história brasileira.

A rápida expansão vista no início do século 20, quando as empresas ferroviárias eram as estrelas da Bolsa (não custa lembrar que o período entre 1903 e 1907 é ainda hoje o período de maior abertura de capitais no Brasil) e contribuíram para um boom puxado pela demanda mundial de commodities, foi o último grande momento do setor do país.

A dependência do café, entretanto, ajudou a levar boa parte destas ferrovias à falência quando a bolsa americana quebrou em 1929, derrubando a economia mundial e o preço das commodities.

Nesse mesmo período, o governo de Washington Luiz, o último presidente da República Velha, se tornaria conhecido pelo lema “Governar é abrir estradas”.

A opção pelas rodovias foi também uma decisão política. Construir uma autoestrada demora em média seis vezes menos tempo do que construir uma ferrovia, além de ser quatro vezes mais barato.

Mas foram outras questões que tornaram o modal rodoviário o preferido dos políticos.

Carros dependem de uma indústria complexa para serem produzidos. Por isso, seriam bons aliados na aceleração da industrialização no Brasil.

Além disso, carros e caminhões são excelentes meios de arrecadação de impostos. Em 1969, por exemplo, o governo criou a TRU, a Taxa Rodoviária Única, para assegurar os investimentos em rodovias.

Em 1985, porém, o governo de São Paulo (e, posteriormente, o governo do Rio de Janeiro) criou o Imposto sobre Propriedades de Veículos Automotores (IPVA). Como o nome já diz, ele é um imposto, ou seja, não precisa ser necessariamente ser reinvestido em rodovias. Em 1986, o IPVA se tornou uma emenda constitucional.

Os impostos sobre o combustível, que somam 56%, são outra excelente maneira (para os políticos) de arrecadar impostos.

Não por coincidência, combustíveis pagam mais imposto do que a maioria dos demais bens. Em média, eles são responsáveis por 12% da arrecadação dos estados, e o IPVA, outros 8%.

Com governos com orçamentos comprometidos, a ideia de desestimular o uso de veículos é, por assim dizer, apenas um sonho.

Não há incentivo político para isso. E, em economia e política, incentivos são tudo o que importa.

Nossa dependência do setor rodoviário, que nos torna também dependentes de grupos de interesse, como o dos caminhoneiros, é um arranjo social no qual só há perdedores.

A escolha pelas rodovias beneficiou apenas os políticos e empobreceu o país.

Em média, cada vagão em uma ferrovia consegue transportar três vezes mais carga do que um caminhão, consumindo ainda 30% menos combustível por quilômetro rodado.

O resultado dessa escolha pode ser colocado em números.

De cada R$ 100 gastos por uma empresa brasileira, cerca de R$ 12,30 são destinados à logística, sendo R$ 6,80 com transporte. O custo logistico no Brasil consome 12,3% do PIB. Já nos Estados Unidos, o gasto com logística soma 7,8% do PIB, sendo 2,4% disso com transporte.

Essa diferença de 4% do PIB, ou cerca de R$ 300 bilhões por ano, é cobrada todos os dias diretamente do consumidor.

Há também uma cobrança indireta. Afinal, estes recursos deixam de ser investidos em outras áreas.

Para se ter uma ideia do tamanho do problema, esse valor representa 1/4 de tudo o que empresas e governos investem no país, além de ser o dobro do que investimos em infraestrutura especificamente.

Desde os anos 1990, quando o setor ferroviário passou por privatizações, os investimentos têm evoluído na área.

Até 2017, por exemplo, cerca de R$ 119 bilhões haviam sido investidos no setor, com um aumento de 2,5 vezes no número de locomotivas e mais de 3 vezes no número de vagões.

A capacidade de transporte de cargas por ferrovias no país cresceu 167% entre 1997 e 2017, ou duas vezes e meia o crescimento da economia, demonstrando um ganho razoável de produtividade.

Ainda assim, há problemas, em especial por conta da nossa velha conhecida insegurança jurídica.

Há neste momento dois projetos fundamentais para o país em andamento no Congresso. O primeiro, o Marco Legal das Ferrovias, proposto pelo senador José Serra (PSDB-SP), prevê uma mudança de regime.

No novo regime, que seria de autorização e não mais de concessão, as empresas poderão apresentar projetos de ferrovias para o órgão regulador. Caso eles sejam aceitos, ela poderá construir e explorar por sua conta e risco.

No modelo atual, há dependência de o governo apresentar um projeto, para então realizar um leilão de concessão, que, além de estar sujeito a um planejamento central e não atender interesses locais de empresas, também cria um custo maior para obter a licença.

O projeto prevê ainda que as empresas poderão explorar as áreas paralelas às ferrovias, algo limitado pela regulação atual.

Segundo o relatório, que deve ser votado no Senado este ano, o setor de ferrovias representa 15% do total de carga transportada no país (fortemente concentrado em minério de ferro). Sob o novo regime, ele poderá ser responsável por cerca de 30%, no final desta década.

Trata-se de uma meta ousada, que agregaria, e muito, produtividade à economia brasileira.

Um outro projeto porém também pode ter um impacto significativo, o da BR do mar.

Pelo texto, o país reduz as exigências para a navegação de cabotagem (entre portos brasileiros), ao permitir a contratação de navios de bandeira estrangeira, ou mesmo profissionais estrangeiros.

Em resumo, ainda que possa assustar a ideia de que “estamos gerando empregos no exterior”, a prática permite empresas possam alugar navios e assim reduzir custos e tempo para ampliar o transporte marítimo.

A expectativa da medida é de um crescimento neste modelo de até 35% ao ano nos primeiros anos. Atualmente, a cabotagem representa apenas 11% do total transportado no país, a despeito da nossa imensa quantidade de rios navegáveis.

Para se ter uma ideia, nossa principal hidrovia, a do Tietê, transporta apenas 5% do que a hidrovia do Mississipi, nos Estados Unidos.

Em princípio, a preocupação com caminhoneiros que eventualmente sejam atingidos pelas medidas é bastante justa. Afinal, famílias inteiras dependem destes empregos.

No longo prazo, porém, impedir que o país fique R$ 300 bilhões mais pobre todos os anos por conta do nosso modal de transportes é uma medida capaz de beneficiar a toda população.