Reforma tributária: Guedes recebeu a bola pingando na área – e isolou
julho 24, 2020Paulo Guedes recebeu a bola pingando na área, com o goleiro caído e a marcação distante, mas isolou. A jogada começou ainda no fim dos anos 2000. Bernard Appy, então secretário de política econômica, saiu do cargo para dedicar-se exclusivamente à reforma tributária.
Appy trabalhava no governo do PT, mas era um dentre muitos técnicos da equipe de Palocci que contavam com respeito dos colegas liberais. Era, portanto, o nome ideal para aquela empreitada que exigia conciliar diferenças para colocar todos no mesmo barco.
Infelizmente, a reforma tributária foi adiada pelo governo Lula e acabou descartada pouco após a crise de 2008. O capital político do presidente foi gasto em projetos desastrados, como a expansão do BNDES. Deu no que deu.
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Já no setor privado, Bernard Appy continuou dedicado à reforma tributária. Pouco depois, fundou o Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) da FGV-SP. O CCiF recebeu doações de gigantes do capitalismo nacional e passou alguns anos dialogando com diversos setores da sociedade para construir sua reforma.
O resultado está registrado em diversas notas técnicas disponíveis no site do CCiF. O foco inicial foi diminuir os conflitos em torno do projeto. Como o desentendimento entre governadores e prefeitos havia travado o debate ainda no governo Lula, a proposta do CCiF incluiu um engenhoso sistema de transição para garantir que nenhum ente subnacional perderia arrecadação com a mudança.
Para evitar debates sobre o sexo dos anjos, o CCiF preferiu focar, num primeiro momento, na tributação de bens e serviços – que alguns chamam de tributação do consumo, mas pode também ser entendida incidente na produção. Isto porque trata-se de uma área onde somos especialmente ruins.
Dada a 186ª colocação entre os 190 sistemas tributários avaliados pelo Banco Mundial no seu relatório sobre ambiente de negócios, é razoável afirmar que o Brasil tem uma das piores tributações de bens e serviços do planeta. Aí está o nó górdio que emperra a produtividade nacional.
O CCiF partiu de quatro princípios: equidade, transparência, neutralidade e simplicidade. Como resultado, propôs a criação do IBS, imposto que reuniria ICMS, IPI, ISS, PIS e Cofins num nome só. O IBS teria a mesma alíquota para todos os produtos, simplificando radicalmente o sistema.
Esta alíquota uniforme permite que o sistema atende ao princípio da neutralidade: as decisões do empreendedor são guiadas pelo desejo do consumidor, e não pelo sistema tributário. Hoje, a construção de um prédio no canteiro de obras é muito menos tributada do que a construção com estruturas pré-moldadas. O STJ perde anos com processos inúteis, como o que julgou a diferença de tributação entre pão e farinha de rosca (pão triturado). Cada diferenciação desta distorce as decisões dos empreendedores e, em muitos casos, promovem a improdutividade.
O novo IBS, proposto por Appy na PEC 45, também prometia diminuir a carga tributária média paga pelos mais pobres e permitiria a discriminação exata de quanto imposto foi pago na produção de cada bem ou serviço – uma transparência que simplesmente não existe no manicômio vigente.
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Outro ponto que travou a discussão da reforma tributária no governo Lula foram as manifestações contra qualquer aumento de impostos. Por isso, alíquota do IBS seria calculada de modo a compensar exatamente a carga tributária atual que incide nos bens e serviços, sem oneração adicional.
Dentre outras vantagens, a proposta também isentaria a tributação de investimentos e exportações, além de desonerar a indústria.
A proposta de Guedes é uma versão piorada da PEC 45
A proposta de Bernard Appy e do CCiF se transformou na PEC 45, apresentada pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP) e apadrinhada por Rodrigo Maia (DEM-RJ). Muitos governadores apoiaram o projeto, que recebeu elogios de Marcelo Freixo ao próprio Paulo Guedes.
Inexplicavelmente, o ministro da Economia atrapalhou a tramitação da PEC 45 desde o início, apesar de reconhecer grandes méritos no projeto. Parecia birra, mais um episódio da ciumeira típica de Brasília. Por mais de um ano, Guedes prometeu que o governo enviaria uma versão melhorada da proposta.
Nesta semana, apareceu a proposta do governo. É, do início ao fim, uma versão piorada da PEC 45. Essa impressão é reforçada pelo nome: o IBS foi rebatizado como CBS – sabe-se lá por que, o ministro liberal quis chamar imposto de contribuição.
O novo CBS unifica apenas PIS e Cofins. O governo até apresentou uma explicação razoável: na visão dele, cabe ao Congresso incluir os impostos municipais e estaduais no projeto. Difícil de explicar, porém, é a exclusão do IPI. Qual a lógica de manter um imposto sobre bens e serviços focado no setor industrial?
Paulo Guedes, em entrevistas recentes, alegou que a tributação sobre os serviços ficaria muito pesada. O discurso é estranho, dado que o ministro se posicionou como anticorporativista em debates recentes, como o da previdência. O país todo ganharia se os diferentes setores fossem tratados da mesma forma.
A explicação se torna inconsistente com a fixação da nova alíquota do CBS em 12% – em contraste com a PEC 45, cujo IBS teria a alíquota necessária para não aumentar a carga tributária. O projeto tem cheiro, cara e cor de aumento de impostos, o que se torna inconsistente com o discurso de Guedes sobre não onerar o setor de serviços. Além disso, o novo CBS cria algumas diferenciações entre setores, que não existiam na PEC 45.
Em suma, trata-se de uma reforma muito mais tímida, que não ataca o cerne do manicômio tributário e pode elevar a tributação do consumo. E o pior: o projeto foi apresentado num momento em que há ambiente político para ser mais ousado. É difícil compreender a contenção de um governo que se propunha profundamente reformista.
Como seria possível melhorar a PEC 45?
O debate da reforma tributária é, até o momento, aquele no qual Guedes tem sua pior atuação como ministro, chegando ao cúmulo de retratar a guerra fiscal do ICMS como uma política liberal. Por outro lado, uma das críticas do ministro é sensata: o novo IBS, proposto pela PEC 45, teria uma alíquota final muito alta para padrões internacionais.
O problema não está no diagnóstico, mas no remédio aplicado. De fato, a alíquota do IBS seria alta, mas este é um resultado inevitável de um sistema tributário que onera excessivamente a produção/consumo de bens e serviços.
Ao invés de usar esta questão como desculpa para não unificar plenamente os impostos sobre consumo, Guedes deveria propor outras fontes de receita que permitissem desonerar o IBS da PEC 45, assim como faz no debate sobre a folha de pagamentos.
Ao substituir a tributação de bens e serviços por outras fontes de receita, seria possível também reduzir o tempo de transição de 10 anos previsto na PEC 45, antecipando os ganhos de produtividade que o projeto pode gerar.
O governo preferiu mexer no desenho do IBS, criando o CBS, uma versão piorada. Assim, perdemos parte importante dos ganhos de produtividade e ainda corremos o risco de aumentar a tributação dos bens e serviços. O Congresso Nacional faria bem se simplesmente ignorar as mudanças propostas e voltar ao texto discutido na PEC 45, aparando arestas e acelerando a transição.
Já que há disposição para fazer uma reforma profunda, também valeria a pena mexer em outros tributos, como os que incidem na renda e patrimônio. Esta é a discussão na qual o governo ainda pode contribuir positivamente.
Ao propor a diminuição das isenções do IRPF e a tributação de dividendos, com diminuição correspondente dos impostos pagos por empresas, Guedes apresentou uma boa ideia que tem futuro. É aí que o governo deveria focar, ao invés de piorar um projeto cuidadosamente construído por mais de 10 anos.
Caso a reforma passe com os moldes propostos pelo governo, todo o esforço de Bernard Appy terá sido em vão. Seria um desastre nacional.