O que muda para o Brasil com a eleição de Joe Biden
novembro 6, 2020Foi em 1854 que o Congresso americano aprovou o projeto do senador Democrata Stephen Douglas chamado de “Kansas Nebraska act”.
A aprovação do ato pelos Democratas foi o estopim para a criação do Partido Republicano. O motivo: o ato autorizava a escravidão nos dois estados, violando um tratado anterior que vetava a escravidão além do Missouri.
Menos de uma década depois, o primeiro presidente Republicano, Abraham Lincoln, declararia o fim da escravidão nos Estados Unidos, mergulhando o país em uma guerra civil.
De lá pra cá, o Partido Republicano passou por ao menos 4 fases, mudando seu espectro ideológico de uma defesa do liberalismo clássico para uma posição mais a direita.
Ao todo, em 231 anos de democracia, o sistema americano viu 6 fases partidárias, com mudanças na coalizão em cada uma delas.
Na 5ª fase, os Democratas ganharam maior relevância em função do New Deal, o plano de recuperação pós Grande Depressão, e se tornaram essencialmente um partido urbano, em contraste com os Republicanos, que migraram para votos em áreas mais rurais.
Na sexta fase, a atual, cujo começo não é bem definido, mas acredita-se que esteja ligado aos anos 60 e suas revoltas dos direitos civis, os Republicanos se tornaram dominantes nos Estados do Sul (aqueles mesmos contra os quais eles promoveram uma guerra civil na época de sua fundação).
Essa divisão geográfica é crucial para entender a postura econômica de cada partido.
Capitais e grandes centros, são via de regra mais abertos ao comércio internacional e à globalização, pois a economia das cidades favorece isso.
Cidades são por natureza um aglomerado de pessoas com especializações que contribuem para oferta de serviços e inovações. Em resumo, quanto maiores as cidades, maior será a gama de serviços disponíveis para sua população, como Edward Glaeser comenta em seu livro “O triunfo das cidades”.
Em contraste, centros menores são mais dependentes e frágeis em uma economia globalizada.
Sua dependência da agricultura pode levar a uma dependência de tarifas e subsídios que levem seus habitantes a apoiar governos mais protecionistas na economia.
Dos grandes centros da Califórnia, estado que vota majoritariamente nos Democratas há 3 décadas, partem algumas das maiores empresas globais, como a Apple, Facebook e Uber.
Na mesma costa oeste, em Seattle e Redmond, também cidades cujo voto é de maioria Democrata, estão a Microsoft e a Amazon.
Tal diferenciação fica clara no atual governo. Donald Trump promoveu uma guerra comercial com a China e elevou tarifas para produtos de países como o Brasil, que viu o alumínio ser sobretaxado. O motivo, claro, era prestar satisfação a seus eleitores, focados na indústria tradicional e no campo, ambos fortemente afetados pela globalização.
Trata-se de uma população de menor escolaridade e ligada a setores que foram duramente afetados pela globalização em função da maior concorrência vinda do leste asiático. Tal grupo de americanos sofreu com perda de empregos qualificados e redução na renda.
A geografia e os centros urbanos, porém, não são a única questão que delimita o foco do presidente na economia.
Biden e seu partido tiveram uma guinada nos últimos anos em função de um aspecto social, também decorrente dos grandes centros urbanos.
À medida em que a população se torna mais rica e aberta ao resto do mundo, pelo impacto tecnológico, sua escala de prioridades tende a ganhar novas camadas.
Direitos e discussões sobre minorias, meio ambiente e desigualdade, têm pautado o partido Democrata.
Se, nos anos 90, com Bill Clinton, o Partido Democrata era um partido focado no rigor fiscal e em promover superávits orçamentários, hoje estas questões parecem mais um empecilho às demandas dessa população Democrata.
Não por coincidência, questões ligadas ao custo de vida, como o elevado custo de saúde e educação, foram a pauta dos debates nas primárias que escolheram Biden.
Inúmeros americanos ficaram mais ricos, empresas de trilhões de dólares como Apple, Google e Amazon ganharam o mundo, mas os custos para aqueles que vivem nos grandes centros também cresceram exponencialmente.
A inflação dos setores de habitação, educação e saúde seguem muito acima da média geral, impactada pela queda de custos de alimentos e energia.
Biden deve promover uma agenda reformista em ambas as questões. Seu desafio porém será enfrentar um senado republicano, pouco afeito a mudanças.
Qual o impacto no Brasil?
A mudança cultural nos Estados Unidos é algo cujo impacto, apesar de mais discreto, também se faz presente no Brasil.
Tratando aqui da economia, uma geração de americanos mais pobres do que seus pais, tem um efeito imenso na criação da chamada “Gig Economy”, ou economia do compartilhamento.
Sua renda depende mais de trabalhos esporádicos e informais do que de um emprego de “colarinho azul”, em escritórios.
Isso fez emergir nos Estados Unidos uma série de empresas, como a Uber, o Airbnb, e outras tantas que trocam a ideia de posse por uso.
Seja por falta de renda ou menor apego a um local e um emprego, os jovens americanos impulsionaram empresas que hoje são bastante influentes por aqui e ajudaram a disrupção de inúmeros setores, como os financeiros.
Fundos de venture capital buscam replicar aqui aquele banco mais ágil, menos burocrático e sem taxas que fazem sucesso por lá. Além de outros tantos setores.
Com um aumento de gastos sociais, há inúmeros analistas prevendo um enfraquecimento do dólar. A lógica seria de que um aumento de dólares em circulação por conta de gastos sociais reduziria sua cotação.
Previsão de cotação do dólar entretanto, é algo que você já deve ter percebido que não se deve levar muito a sério, pois muda em função de inúmeras variáveis. Justamente por isso é melhor nem entrar neste tema.
Um determinado consenso que nos interessa porém, é na questão ambiental.
Um governo Biden deve promover uma agenda ambiental pesada, incentivando energias renováveis, fortalecendo subsídios na área, e pressionando por preservação ambiental como na Amazônia.
É evidente que nada disso decorre do seu amor à humanidade, mas sim de uma série de interesses. Os Estados Unidos lideram o avanço na indústria de carros elétricos e são fortes jogadores na área de energias renováveis.
Também são um mercado agrícola forte, o que significa que podem se utilizar de barreiras com justificativas ambientais para diminuir a concorrência.
Tudo isso é parte do jogo, claro. Da mesma maneira como produtores agrícolas europeus não têm interesse em um livre comércio com o Mercosul, os Estados Unidos devem lutar para preservar seus interesses internos.
A pressão ambiental também é um fator relevante contra a China, o maior poluidor do planeta hoje.
Pressionar o mundo a boicotar locais que não preserve florestas ou que poluem demais, ou ainda, criar um imposto sobre o custo ambiental, é uma maneira de promover protecionismo e preservar interesses no século 21, com uma justificativa global.
Neste quesito o Brasil deveria ser, em teoria, uma referência mundial. Estamos anos-luz à frente da China e outros países em desenvolvimento, como Índia e Rússia, em questões ambientais.
Temos uma das matrizes energéticas mais limpas do planeta.
Nosso problema, porém, é que não basta ser. É também preciso parecer. Nessa questão, ser mais pragmático e combater o desmatamento na Amazônia (a maior fonte de poluição no Brasil), é crucial.
Para o bem dos interesses do país, é preciso que exista uma política ambiental que jogue duro com descaso ambiental, e restrinja acesso a crédito por agricultores que desmatem e assim por diante.
Com um governo Biden, alinhado a potências europeias, o Brasil precisará repensar sua atuação nos últimos anos e dedicar especial atenção a questão ambiental.
Isso porém são questões externas. Ainda que Biden fosse um aliado do governo brasileiro, nada disso reduzia a necessidade de o país de resolver seus problemas internos.
Somos um país cuja população está envelhecendo sem antes ter enriquecido. Gastamos demais em alguns aspectos, como o judiciário e previdência, e pouco fazemos para mudar essas questões.
Cerca de 42% das nossas crianças vivem na pobreza, e mudar essa questão não é tarefa do presidente dos Estados Unidos, mas do congresso brasileiro que está sentado em cima de reformas.
Nossa dívida pública está se aproximando de 100% do PIB, o que significa que se o Banco Central americano, o Federal Reserve, elevar seus juros (algo não tão improvável de ocorrer, dado um aumento de gastos do governo americano que dificultaria o financiamento da dívida), teremos de fazer o mesmo por aqui, resultando em um colapso da máquina pública.
Se não mudarmos a trajetória para qual estamos caminhando, corremos o risco de ver problemas similares aos da Grécia e Portugal, com a diferença que não temos uma Alemanha para nos socorrer.
A despeito da relevância para o resto do mundo, as eleições americanas não mudam em nada nossa situação interna.
Sendo Biden ou Trump, dependeremos dos nossos esforços internos.
Tudo isso pode parecer óbvio, claro, mas a depender de Brasília, esta mudança de rumo segue em compasso de espera.
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