Militares ganham força em sucessão de crises e avançam sobre decisões econômicas
abril 24, 2020SÃO PAULO – O avanço da pandemia do novo coronavírus e a crise política enfrentada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ampliaram o espaço da ala militar no governo federal. De grupo escanteado no primeiro ano de gestão em meio à queda de braço com a chamada “ala ideológica”, os fardados passaram a representar a totalidade dos ministros do Palácio do Planalto e acumular funções diante dos novos desafios da administração.
A ascensão de Walter Braga Netto – interventor federal no Rio de Janeiro durante a administração Michel Temer (MDB) e agora primeiro militar a ocupar a Casa Civil desde o general Golbery do Couto e Silva, na ditadura militar – para o papel de principal articulador político do governo ilustra o quadro. O general da reserva assumiu a pasta em fevereiro e passou a ser peça central na formulação da estratégia de combate à pandemia do novo coronavírus.
Com o avanço da crise, foi escalado pelo presidente para comandar o Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19 e passou a trabalhar em frentes de resposta. A primeira foi dissolver disputas no próprio governo e reduzir o nível de ruídos de comunicação interna. Isso incluiu uma tentativa de cessar-fogo entre Bolsonaro e o então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta no início do mês – o que chegou a surtir efeito, mas foi logo atropelado por um novo embate que culminou na troca do comando da pasta.
Em outro flanco, o Braga Netto atuou em uma aproximação de Bolsonaro com lideranças do “centrão” – bloco que reúne algumas das principais forças no parlamento. O movimento conta, inclusive, com oferta de espaços cobiçados no segundo escalão do governo em troca da construção de uma base mais sólida no Congresso Nacional – seja para ter maior influência sobre a agenda legislativa ou mesmo para blindar o presidente da abertura de um possível processo de impeachment.
A atuação da ala militar também se estendeu à seara econômica. Na última quarta-feira (22), o próprio Braga Netto anunciou um plano de retomada da economia, chamado Pró-Brasil, que prevê inicialmente um investimento de R$ 300 bilhões – R$ 250 bilhões em concessões e parcerias público-privadas e outros R$ 50 bilhões de investimento público. O plano, embora ainda não apresentado em detalhes (apenas 7 slides em Power Point), gerou discórdia entre a equipe econômica, que não participou do anúncio.
Nos bastidores, circulou uma interpretação de que o lançamento do Pró-Brasil à revelia da opinião da pasta econômica representa um movimento para isolar – ou ao menos enfraquecer o ministro Paulo Guedes, que em reunião com ministros antes do anúncio do programa chegou a dizer que a recuperação teria que ser feita com investimento privado e preservando as âncoras fiscais, como o teto de gastos. Houve inclusive comparações com medidas econômicas tomadas no governo da ex-presidente Dilma Rousseff.
Em coletiva de imprensa ontem (23), Braga Netto disse que houve uma “má interpretação” do que foi mostrado e que o plano trata de uma atuação coordenada com diversas pastas. “Ninguém falou em estourar teto de gastos. Não se falou em recursos. Se falou em juntar os planejamentos e coordenar”, disse.
“O primeiro ministro me procurou e apresentou um plano. O segundo ministro me procurou e apresentou um plano. Antes de o terceiro vir, nós resolvemos: para, reúne todos os ministérios, inclusive o Ministério da Economia. Vamos alinhar todos os planos, ver o que pessoal quer e comparar necessidade com possibilidade”, afirmou. Segundo ele, o plano trata de investimentos públicos e privados e atentará para as capacidades do governo.
As sinalizações geram novos questionamentos sobre os caminhos a serem adotados pelo governo para a economia no longo prazo e o espaço que a agenda de reformas poderia ter (ou não) passadas as fases mais agudas da crise.
Reposicionamento
Na avaliação de Rafael Cortez, analista político da Tendências Consultoria Integrada, o novo papel desempenhado pela ala militar pode representar mudanças mais profundas na orientação do governo Bolsonaro, diante do quadro político, social e econômico que se desenha pela combinação do novo coronavírus com os atritos já observados entre os Poderes.
“A ideia de que a crise blindaria o presidente de eventual processo de impeachment foi crescentemente questionada a partir de dados mais recentes, o que mobilizou uma maior participação das Forças Armadas em um movimento que havia se iniciado no pré-crise, mas que ganha intensidade sobretudo com o fato novo de tensão”, observa.
Os riscos crescentes de perda de popularidade e forte deterioração econômica em meio à Covid-19 colocam o governo diante da necessidade de fazer novas escolhas.
Como se isso não bastasse, a participação do presidente em manifestações que pediam uma intervenção militar e a volta do AI-5 e a subsequente autorização do Supremo Tribunal Federal para a abertura de investigação contra os atos – que pode incorporar apurações do chamado “inquérito das fake news” – ampliou a percepção de risco de abertura de um processo de impeachment.
Para Cortez, a ala militar conquista protagonismo como ator na garantia da continuidade do mandato de Bolsonaro, ainda que lançando mão de movimentos diferentes dos adotados pelo governo até o momento, como a aproximação de lideranças do chamado “centrão” e uma preocupação com investimentos públicos para a retomada da economia no pós-crise.
O especialista observa um novo equilíbrio de forças políticas, que modifica o quadro mais favorável à implementação de reformas econômicas observado nos últimos anos. Ele acredita que a pandemida do novo coronavírus traz novos elementos à discussão e pode prejudicar o debate sobre as reformas.
“O relativo sucesso no encaminhamento das reformas liberalizantes tinha a ver com o paradigma que foi colocado a partir dos desdobramentos da Lava-Jato, batendo no impeachment e do incentivo para o distanciamento em relação ao que foi o governo Dilma Rousseff”, pontua.
“A Covid-19 altera essas regras. Ela traz um debate muito mais equilibrado, com diversos diagnósticos presentes na análise, informado por novas evidências empíricas. E, portanto, [torna] o debate reformista ainda mais complicado”, complementa.
Neste quadro de governo enfraquecido, mobilização das Forças Armadas em uma tentativa de estabilização e de mudança no equilíbrio de forças provocada pela pandemia, crescem os desafios a Paulo Guedes. A expectativa é que cresça o questionamento às teses da equipe econômica ao longo da crise.
Ocupando espaços
Na avaliação de João Villaverde, analista sênior de Brasil na consultoria Medley Global Advisors, as crises trouxeram à tona uma divergência contratada entre militares e a equipe econômica no governo. De um lado, uma aproximação mais desenvolvimentista. Do outro, uma visão mais alinhada ao liberalismo, em defesa de uma agenda de reformas.
Para ele, o grupo fardado passou a conquistar mais espaço em meio a um vácuo deixado pelo outro grupo, que enfrentava dificuldades em entregar propostas de reformas antes da crise – caso da administrativa e da tributária, que acabaram adiadas sucessivas vezes e não apresentadas – e em dar respostas eficazes e em tempo para os efeitos da pandemia do novo coronavírus.
“O governo claramente deu demonstrações de que não era capaz de entregar sequer propostas de reformas”, observa. “A pandemia começou e o governo entregou como primeira resposta econômica um combinado de medidas antigas, entre liberação de FGTS, antecipação de despesas orçamentárias do quarto trimestre para o segundo trimestre e a defesa de propostas velhas, como a privatização da Eletrobras”.
“Claramente havia um vácuo. No começo, ele foi ocupado pelo Congresso, a partir da demanda de especialistas de fora, clamando por uma renda básica emergencial. Agora, esse vácuo é ocupado pelo Executivo novamente, mas pela Casa Civil”, complementa.
O fato de o plano Pró-Brasil não ter sido apresentado em detalhes (sem formatação de projetos, custos e explicações sobre os papéis do governo e da iniciativa privada) reforçaria um movimento político da ala militar, que busca ocupar espaços que antes estavam com os parlamentares e poderiam ser da equipe econômica.