Futebol Europeu: quando o financeiro fala mais alto que o esportivo
outubro 25, 2020Os últimos dias têm sido recheados de boas conversas a respeito de negociações de direitos de transmissão de clubes europeus. Vamos juntá-las para tentar traçar cenários sobre o futebol internacional e eventuais reflexos no Brasil.
Na semana passada, a conversa mais quente foi a tentativa de Manchester United e Liverpool de implodir a Premier League tal qual conhecemos, com o projeto “Big Picture”.
A ideia era repassar dinheiro para as divisões inferiores da Inglaterra, cujos clubes estão em dificuldade pelos problemas gerados pela pandemia. Mas, nada é de graça.
Em troca do dinheiro, os grandes clubes propunham a redução de participantes na Premier League de 20 para 18, inclusive com a redução de membros com poder de voto, dos atuais 20 para nove, sendo que bastariam seis (Liverpool, Manchester United, Manchester City, Arsenal, Tottenham e Chelsea) para garantir qualquer decisão.
Entre as mudanças propostas estava a ideia de que cada clube pudesse negociar direitos de TV diretamente, abandonando o conceito de negociação da competição. O objetivo, claramente, era fazer mais dinheiro e desequilibrar a atual distribuição de dinheiro na liga.
Segundo Kieran Maguire, especialista em finanças esportivas da Universidade de Liverpool, havia uma pegadinha na proposta: o dinheiro que seria dado agora para as divisões menores seria, na verdade, um adiantamento referente às negociações futuras.
Os demais clubes encerraram a conversa rapidamente, é óbvio. A ideia de que a competição é maior que os clubes, e que eles ganham por estarem juntos, falou mais alto.
Na sequência, explodiu a notícia de que o banco americano JP Morgan havia disponibilizado uma linha de US$ 6 bilhões em financiamento para que os clubes europeus, capitaneados novamente por Liverpool e Manchester United, criassem a European Champions League, que seria a versão permanente da atual Champions League.
Importante lembrar que o atual modelo da mais importante competição de clubes do mundo passará por uma revisão em breve, pois a atual estrutura tem validade até a temporada 2022/23.
Mas os clubes ingleses, assim como já havia sido levantado anteriormente pelo Real Madrid, querem uma competição com 18 clubes, os mais importantes da Europa, jogada em turno e returno.
Ou seja, os clubes abandonariam suas ligas nacionais e jogariam apenas a European Premier League. Sem acesso e rebaixamento, apenas vendendo bilhões em ingressos e direitos de TV.
Parece ótimo. Mas só parece.
Primeiro, o que motivaria Liverpool e Manchester United a capitanear estes movimentos em sequência? Note que ambos estão envolvidos na tentativa de implosão da Premier League e na criação da European Premier League. Naturalmente, implodir a competição inglesa ajuda na criação da competição continental.
Mas tem mais. O Manchester United é controlado pela família Glazer, detentora da maior parte das ações do clube, que tem capital aberto na bolsa de Nova York. E há comentários sobre o interesse deles na venda do clube.
Na Europa, os valores das negociações de clubes são baseados em múltiplos de receitas quando os clubes não têm ações em bolsa. Quando estão na bolsa, o valor de mercado tende a ser considerado o valor justo. Abaixo, vemos a evolução do valor das ações do Manchester United nos últimos cinco anos.
Fonte: Yahoo Finance
Note que as ações tiveram alta entre 2015 e 2018, mas depois sofreram forte queda, inclusive num período onde houve maior liquidez (mais negociações).
A seguir, temos uma evolução nas Receitas, Valor de Mercado Potencial (baseado no múltiplo de 3x as Receitas) e Valor de Mercado em Bolsa.
O clube já negocia em bolsa acima do múltiplo médio de negociações de clubes na Europa, claramente tendo um prêmio em função de jogar a Premier League e ser uma das marcas mais reconhecidas no mundo do futebol. O United é um dos poucos clubes realmente globais.
Mas os Glazer querem fazer o clube valorizar para vender por um valor maior. Se as receitas crescem, cresce o valor de mercado.
Vamos para o Liverpool. Controlado pelo grupo americano Fenway, o clube passou por forte reestruturação nos últimos anos, fazendo suas receitas praticamente dobrarem entre 2014 e 2019.
Parte pelo crescimento das receitas da Premier League, parte pelo desenvolvimento comercial e parte pelo bom desempenho na Champions League. Méritos totais do grupo controlador e dos profissionais do clube.
Na semana passada, foi anunciado que o grupo Fenway teria recebido uma oferta para vender 25% de participação para uma SPAC por US$ 1 bilhão.
A SPAC (Special Purpose Acquisition Company) é um veículo de investimentos comum nos EUA. Trata-se de uma holding que recebe capital para investir em diversos ativos, que mantém suas estruturas de gestão apartadas, fechadas, e quem tem estruturas de capital aberto é apenas a SPAC.
As SPAC já movimentaram mais US$ 51 bilhões em 2020, segundo matéria do Financial Times, e são consideradas como “cheques em branco”, pois têm liberdade de aportar recursos onde quiserem, naturalmente baseadas num prospecto inicial.
A RedBall, SPAC interessada no grupo Fenway – que possui diversos ativos esportivos como o Liverpool e o Boston Red Sox –, tem como objetivo investir em esportes em geral e já levantou US$ 575 milhões e estaria buscando mais US$ 1 bilhão para fechar a aquisição da Fenway.
Pois bem, o que aumenta o valor de uma companhia? Mais receitas, mais lucro, mais resultados. Ora, o que aumenta isso num clube de futebol? Competições que em teoria agregam mais valor.
A ideia de uma grande competição continental apenas com clubes de grande apelo de torcida, sem rebaixamento, é algo que faz brilhar os olhos de quem está interessado em valorizar seu produto. Não por acaso, a ideia ganhou corpo amparada em dois clubes controlados por americanos, acostumados a modelos de ligas fechadas.
Acontece que no futebol a realidade é outra. Veja que houve pouca reação dos demais clubes, especialmente da ECA, que é a associação de clubes europeus.
Primeiro, porque o presidente (Andrea Agnelli, da Juventus) tem assento no conselho da UEFA. Segundo, porque há questões importantes em termos esportivos a serem tratadas.
Pense numa competição única entre os grandes da Europa, que abandonariam suas competições nacionais. Porque não dá para fazer uma competição assim jogando o nacional junto? Quantos campeões teríamos num ano? Um, claro.
Agora, diferente das ligas americanas, que a despeito das disputas aceita clubes que apenas participam, numa grande competição europeia a falta de títulos seria devastadora. O que hoje não acontece, porque também há apenas um campeão da Champions League. Mas há sempre a possibilidade de vencer a liga nacional, nem que seja pela 10ª vez consecutiva.
Clubes que ficam anos sem títulos perdem relevância. Milan e Inter na Itália, Arsenal na Inglaterra, vários clubes alemães que foram desaparecendo com o fortalecimento do Bayern, e por aí vai.
Mas, ainda assim, há disputas locais, e esses gigantes sem nenhuma chance de título seria um desastre para a competição. O mesmo motivo que mantém ativos os campeonatos estaduais no Brasil.
Uma prova disso é que a Liga Serie A italiana aprovou a criação de uma media company que será responsável pela negociação dos direitos de TV do campeonato. Estima-se que o fundo de private equity inglês CVC pague até € 1,5 bilhão por 10% dessa empresa. O fundo ficará responsável por vender os direitos por 10 anos, e terá direito a parte dos lucros, garantindo um valor mínimo aos clubes.
Quem tem forçado esta negociação? Juventus, Milan e Inter, justamente os três clubes apontados como participantes italianos dessa suposta European Premier League. E alguém acha que o CVC, ou qualquer outro interessado, manteria uma proposta sabendo que há risco do negócio perder valor?
Porque, no final, o ganho nunca é apenas financeiro. Só quem não entende a dinâmica do esporte acredita que o ganho é meramente financeiro. O ganho é primordialmente esportivo, o que inclusive explica o desastre das gestões de boa parte dos clubes brasileiros. Mas é fundamental que haja equilíbrio entre gestão financeira e esportiva, inclusive nas conquistas.
Por isso, ainda que seja possível que haja mudanças nas estruturas do futebol, ela ainda tende a ser mais do mesmo. Afinal, o esporte como “entretenimento” só se justifica se houver competição e conquista.
E no Brasil? O que isso tem relação com nosso país?
Bastante. Estamos vivendo uma fase na qual os aspectos financeiros ganham espaço. As mudanças nas regras de venda dos direitos de transmissão – a famosa Lei do Mandante – explicam parte disso.
Numa coluna do jornalista Rodrigo Mattos no UOL fica claro que o Flamengo justifica seu posicionamento em favor da medida pensando em sua agenda (aliás, justificativa que o clube apresentou ao Cade está repleta de erros, especialmente no que tange ao perfil de negociações das grandes ligas europeias e americanas, o que mostra total desconexão com a realidade).
Não está errado, como não estão errados Liverpool e Manchester United. Mas quem pensa em indústria e num ambiente onde todos ganham deveria pensar no todo.
Continuo na tentativa de propor uma indústria mais eficiente do futebol. Que não significa mais competitiva, mas sim uma que permita aos mais eficientes e profissionais se destacarem, sem contudo aniquilar os adversários, que não são inimigos nem dentro nem fora de campo.