Casos de Covid-19 no Brasil já passam de 5 milhões, segundo estudos; entenda por que a subnotificação no país é tão alta
junho 3, 2020SÃO PAULO – Com mais de 31 mil mortos, o Brasil tem registrado diariamente números recordes referentes à Covid-19, mas o impacto real da pandemia no país pode ser ainda maior por conta da subnotificação.
Dados do mapa interativo desenvolvido pela Universidade Johns Hopkins, que monitora a pandemia no mundo, mostram que o Brasil já é o segundo com mais casos da doença, atrás apenas dos Estados Unidos, e o quarto na lista de países com mais mortes acumuladas por Covid-19.
Segundo o boletim divulgado pelo Ministério da Saúde nesta terça-feira (26), o Brasil registrou 555.383 casos da doença e 31.199 óbitos.
Mas alguns estudos, feitos com diferentes metodologias, mostram que existe subnotificação tanto nos números de mortes, como nos de casos.
Um estudo divulgado na última segunda-feira (25) revelou que o Brasil tem sete vezes mais casos de coronavírus do que os informados oficialmente. Os dados são resultado da primeira etapa nacional de uma pesquisa coordenada pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), que mostra, entre suas principais conclusões, que em um grupo de sete pessoas contaminadas no país, apenas uma sabe que está infectada.
O levantamento foi realizado pelo Ibope entre 14 e 21 de maio, com 25.025 pessoas de 133 cidades de todo o país. Em 90 cidades, incluindo 21 das 27 capitais, que representam cerca de 25,6% do total da população brasileira, estima-se que 760 mil pessoas foram contaminadas – com a margem de erro, a variação vai de 705 mil a 867 mil. O número é 36% maior do que o divulgado oficialmente pelo Ministério da Saúde no mesmo período.
A pesquisa ainda revelou que a proporção de pessoas com anticorpos para doença – aquelas que já tiveram ou têm o coronavírus -, é estimada em 1,4%. Com isso, o estudo prevê que nessas cidades a cada sete pessoas com coronavírus, apenas uma sabe que está infectada.
Além dos casos superiores aos registrados, o estudo apontou para uma disparidade no cenário epidemiológico em cada região do Brasil. Das 15 cidades com maior prevalência da doença, 11 estão no Norte do país.
Em Breves, no Pará, a proporção da população que tem ou já teve coronavírus foi estimada em 24,8%, o que significa que quase um quarto dos 103 mil habitantes da cidade foram contaminados, enquanto apenas 498 casos foram confirmados oficialmente. O segundo resultado mais alto foi aferido em Tefé, no Amazonas, onde cerca 41 mil dos 210 mil habitantes do município estão ou já estiveram com o novo coronavírus.
Nas capitais pesquisadas, Belém aparece com a maior taxa de infectados (15,1%), seguida por Manaus (12,5%), Macapá (9,7%), Fortaleza (8,7%) e Rio Branco (5,4%). Em São Paulo e no Rio de Janeiro, cidades que registram o maior número de casos confirmados oficialmente, a estimativa é que respectivamente 3,1% e 2,2% da população tenha anticorpos contra o coronavírus.
Outros estudos apontam para a mesma problemática: a existência de uma grande subnotificação dos casos confirmados e do número de óbitos em decorrência da Covid-19 em todo país.
O grupo COVID-19 Brasil, que reúne pesquisadores de diversas universidades do país, por exemplo, estima que mais de 5 milhões de pessoas foram infectadas pela doença – um número quase dez vezes maior que os oficiais.
Para chegar a esse resultado, os pesquisadores liderados por Domingo Alves, professor e coordenador do Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) se basearam nos dados epidemiológicos da Coreia do Sul e ajustaram variáveis como a pirâmide etária brasileira, o tempo médio entre a confirmação do caso e a morte e fatores de risco para a infecção na população brasileira para criar um modelo de estimativa de casos. O ajuste conta também com informações sobre o número de mortes.
Cálculos feitos pelo grupo indicam ainda que os dados oficiais de óbitos representam apenas 60% do total.
Além dos estudos, o aumento do número de internações e mortes por doenças respiratórias registradas durante a pandemia e o crescimento de enterros diários são outros fatores que reforçam a existência de subnotificações no país.
As mortes por síndrome respiratória aguda grave (SRAG) aumentaram quase 20 vezes no Brasil entre março e maio deste ano na comparação com o mesmo período do ano passado, segundo o Portal da Transparência dos Cartórios de Registro Civil. O total saltou de 337 para 6648.
Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) indicam que esse aumento expressivo no número de internações e óbitos registrados por SRAG pode ter influência direta nas subnotificações de ocorrências da Covid-19, já que não houve outra mudança no cenário epidemiológico além do surgimento do Sars-Cov-2.
O aumento de registros de internações fora da época; a quantidade de idosos afetados pela doença; e o baixo índice de testes negativos para outras gripes, como a Influenza A, são outros motivos apontados pelos cientistas como possíveis indícios de subnotificação da doença, apesar de os dados oficiais não refletirem essa ligação.
No estado do Amazonas, o crescimento de óbitos por SRAG no período foi de 5.054%, saltando de 11, em 2019, para 567 em 2020. O aumento também é visto em outros locais do país que concentram grande número de casos de Covid-19, sendo Pernambuco o estado com mais ocorrências de óbitos por doenças respiratórias.
Outro fator que preocupa os especialistas e reforça os indícios de subnotificações é a falta de diagnósticos para Covid-19. Como a prioridade nos testes é para pacientes graves, os portadores com sintomas leves ou assintomáticos não são testados – ampliando as incertezas sobre o avanço da doença no país.
“O que é alarmante para o Brasil é que a estratégia adotada de notificações para os casos confirmados nos boletins são as de internações, mas elas representam em torno de 10% a 15% dos casos totais. Ou seja, os assintomáticos e os sintomáticos leves não são testados e, com isso, não conseguimos monitorar, nem colocá-los em isolamento e eles são a verdadeira chama da epidemia”, explica Domingos Alves, professor e pesquisador da USP.
Desigualdade
Os pesquisadores, que integram uma outra rede de pesquisa criada durante a pandemia, o grupo Ação Covid-19, são responsáveis por ferramentas que avaliam a exposição de cidades e bairros, caso a caso, e mensuram o nível de confinamento necessário para conter a infecção.
O Índice de Vulnerabilidade Covid-19 (IVC19) calcula a exposição de um lugar a partir da infraestrutura urbana do entorno. Já o modelo MD Covid (Modelo de Dispersão da Covid-19) incorpora esse índice e a densidade demográfica para explorar diferentes cenários de contenção do vírus. Eles contam com um simulador que permite uma visão de cada situação.
“O modelo fornece uma dinâmica de contaminação a partir dos dados colocados nele (taxa de densidade demográfica e IDH ou IVC-19). Ele está calibrado com algumas cidades do mundo e o objetivo é encontrar a porcentagem de confinamento ideal para o vírus não contaminar muitas pessoas e colapsar o sistema de saúde local”, explica José Paulo Guedes Pinto, economista e professor da UFABC e um dos responsáveis pelo projeto.
Durante a pesquisa foi aferido que o bairro de Copacabana, área nobre da zona sul do Rio de Janeiro, com a maior densidade demográfica da cidade por quilometro quadrado, precisa de um nível de isolamento social diferente do que as comunidades do Pavão-Pavãozinho e Cantagalo – localizadas no seu entorno.
Para evitar o colapso do sistema de saúde, os pesquisadores preveem que o confinamento teria de ser em torno de 80% em toda Copacabana. Já nas comunidades, onde o risco de transmissão é maior por questões sanitárias e boa parte da população é composta por trabalhadores informais, o índice de isolamento teria que subir para 92%.
“Analisando as duas variáveis percebemos que, em termos de casos e mortes, as populações mais vulneráveis estão com números baixos, e isso pode ser um indício de subnotificação”, afirma Guedes Pinto
O professor ainda aponta que os registros de casos e mortes em regiões mais vulneráveis abaixo dos de regiões mais desenvolvidas contrasta com dados gerados pela pesquisa que indicam um alto índice de mortalidade das populações em situação de vulnerabilidade social. “Parece que quem está os notificados de populações e territórios mais pobres já estão chegando para morrer no hospital”.
Para apoiar essas comunidades, o grupo está promovendo um intercâmbio de ações entre moradores e líderes de algumas comunidades do país para troca de iniciativas e criou uma página com diversas sugestões de ações a serem realizadas pelo poder público com propostas nas áreas de saúde, economia e serviços.
Às escuras
O abismo em relação aos casos confirmados e os reais, alinhado a fatores como ausência de testagem em massa, demora na confirmação dos testes e dificuldades em manter a população em isolamento dificulta a atuação durante a pandemia, porque a tomada de decisão está sendo baseada em dados que não representam a realidade, conforme aponta o doutor Domingo Alves.
“Se estamos trabalhando olhando só para os números de casos e óbitos das pessoas que sofreram internações, a gestão que está acontecendo é ineficaz, porque a internação é a consequência grave da pandemia – ela é todo o problema. Não se tem um cenário adequado para gerir a situação”, explica o pesquisador, que também é coordenador do Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP).
O economista e professor da Universidade Federal do ABC, José Paulo Pinto, reforça que mesmo em meio às descrenças em relação aos casos oficiais, essas simulações ajudam a projetar cenários futuros e contribuir para a criação de políticas públicas mais efetivas.”Como não temos a menor ideia do que está acontecendo, a gente precisa criar esses modelos, porque o Brasil não está testando e nem trabalhando de maneira coordenada desde o começo da pandemia”, diz.
Diante desse cenário, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público Federal (MPF) protocolou um documento solicitando informações do Ministério da Saúde sobre as ocorrências de subnotificação no país.
Os procuradores Deborah Duprat e Marlon Weichert questionam se os dados divulgados de casos confirmados e de óbitos contemplam apenas diagnósticos confirmados por exames laboratoriais ou se também incluem casos cujo diagnóstico foi clínico-epidemiológico. A procuradoria também pede esclarecimentos sobre o tempo médio para a confirmação dos casos e transparência das informações para serem consultadas pelo público em geral e pela comunidade científica.
O documento aponta para uma série de diferenças entre os dados do Ministério e outras fontes oficiais. Os procuradores também questionam o aumento no número de mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave “com causas não devidamente esclarecidas e sem atribuição direta à Covid-19, definidas como ‘em investigação’ nos boletins epidemiológicos”.
“Com a grande probabilidade que temos de subnotificação, vemos as autoridades trabalhando um pouco na base do palpite. Não há informações sobre o número de contaminados para poder avaliar as zonas de maior incidência e emitir medidas de vigilâncias epidemiológicas ou de vigilância não farmacêuticas que devem ser adotadas e até mesmo dimensionar o impacto da epidemia e a dimensão de óbitos”, pontua o procurador Marlon Weichert.
Weichert explica que o Brasil adotou uma abordagem de classificação em que são considerados casos oficiais de Covid-19, aqueles efetivamente confirmados por exame laboratorial.
No entanto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) define que, em casos de pandemia e depois que uma região atinge níveis de contaminação em larga escala, o diagnóstico clínico-epidemiológico pode ser aplicado para contabilização das estatísticas oficiais.
Um dos questionamentos da Procuradoria ao Ministério da Saúde é se existe algum controle sobre os casos registrados a partir do diagnóstico clínico-epidemiológico e se essas pessoas estão sendo incluídas nos números divulgados diariamente.
Os procuradores deram o prazo de cinco dias para que o Ministério respondesse aos questionamentos, encaminhados no final de abril, mas com a saída do ministro Nelson Teich e as indefinições dentro da pasta, um novo prazo foi dado pela promotora Deborah Duprat.
Boa parte dos questionamentos feitos pela promotoria segue sem resposta, segundo o procurador Marlon Weichert, mas o Data Sus já informou estar preparando uma base com dados anônimos sobre a pandemia para que eles possam ser trabalhados por terceiros.
Como reverter essa situação?
Para Domingos Alves, a testagem em massa é a solução mais adequada para diminuir os gargalos da subnotificação. Com melhores indicadores, a população com sintomas leves e os assintomáticos podem ser colocados em isolamento evitando a propagação do vírus.
Já o economista e professor da Universidade Federal do ABC, José Paulo Pinto, acredita que o Estado precisa atender as reivindicações das populações mais vulneráveis, que estão sujeitas a sofrer mais com o avanço da pandemia pelas dificuldades sociais e de manter o confinamento.
“A população já está criando soluções e o estado deve financiar e trabalhar com as organizações locais para evitar uma tragédia maior”.
Para controlar a curva epidêmica, Guedes Pinto reforça que é preciso manter as medidas de isolamento social e acrescenta que um lockdown é inevitável. Mas, para isso acontecer, o professor ressalta que é preciso dar condições para que as pessoas cumpram essas recomendações.
Outra forma encontrada por pesquisadores brasileiros para lidar com o fenômeno seria a construção de plataformas colaborativas para mapear casos e óbitos e estimar as subnotificações da Covid-19.
A ferramenta Colabcovidbr, lançada em abril, é uma iniciativa da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), em parceria com a Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ela mapeia a doença com base em informações anônimas e colaborativas, e foi construída a partir de dados de localização.
“O melhor jeito de combater essa subnotificação é que as próprias pessoas informem os casos. Pessoas que tiveram acesso aos infectados ou que não puderam ser testadas precisam ser ouvidos para melhorar os modelos e a nossa ideia parte da premissa de que a ferramenta colaborativa é a única forma de conseguirmos ter 100% de conhecimento dos dados”, explica André Mendonça, professor do Departamento de Ciências Florestais (DCF) da Ufam.
O professor crê que os estudos sobre as subnotificações podem ser uma boa arma para a compreensão de questões relacionadas ao vírus e gerar insumos para criação de medidas que ataquem o problema localmente. A questão espacial é outro ponto levantado pelo pesquisador que deve ser levado em consideração durante a formulação dessas políticas.
“A nossa organização social e urbana é muito diferente da dos países europeus, por exemplo, e os níveis de acesso a saúde e saneamento também. Então fica muito difícil criar políticas baseada em estudos que usam outras estruturas como parâmetro, porque todas essas questões peculiares à nossa realidade têm um peso na disseminação do vírus”, pontua Mendonça.
Futuro
O avanço do coronavírus no país pode se intensificar ainda mais nos próximos dias. Projeções do grupo Covid-19 Analytics, formado por professores dos departamentos de Economia e Engenharia da PUC-Rio, estimam que até o dia 15 de junho o país terá mais de 1 milhão de casos confirmados e 48 mil mortes.
A previsão é feita com base na taxa de expansão, indicador de quantas pessoas cada infectado contamina. O desejável é que essa variável seja menor do que 1, pois implicaria em uma redução gradativa do número de casos ativos.
As estimativas divulgadas pelos pesquisadores mostram que a taxa no Brasil, no último domingo (31) estava em 1,4 (considerada alta).
Os dados também têm relevado diferenças consideráveis de propagação entre as cidades com maior e menor Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM).
O IDHM é um índice composto de indicadores de três dimensões do desenvolvimento humano: longevidade, educação e renda. O estudo da PUC-Rio mostra que os territórios com IDHM superior a 0.727, no último dia 25 de maio, têm a taxa de expansão de 1,2 – abaixo da nacional -, enquanto em municípios com IDHM menores a taxa sobe para 1,6.
Essas desigualdades dificultam ainda mais a atuação para controlar o vírus, tendo em vista que cidades mais pobres não possuem estrutura suficiente para lidar com a pandemia.