Brasileiros já vacinados podem não receber segunda dose da vacina no prazo certo; cientistas avaliam riscos
janeiro 21, 2021SÃO PAULO – O pontapé inicial da vacinação contra a Covid-19 foi dado nesta segunda-feira (18). Porém, problemas sobre falta de insumos e dificuldades logísticas acendem dúvidas sobre a imunização contra o novo coronavírus, geralmente realizada com a aplicação de duas doses por paciente.
Diante dos atrasos na produção das vacinas, algumas questões começam a preocupar: a quantidade de doses disponível no país hoje é suficiente para atender pelo menos o primeiro grupo prioritário? Esse grupo conseguirá receber as duas doses recomendadas? Quais os riscos e consequências, caso não seja possível aplicar as duas doses?
O InfoMoney entrou em contato com especialistas e compilou os dados publicados para responder essas e outras perguntas.
Brasil: quantas vacinas temos hoje?
A situação atual é preocupante. Por enquanto, o Brasil tem acesso a 6 milhões de doses da CoronaVac, vacina produzida pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac. O uso emergencial dessas doses foi aprovado no último domingo (17) pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O Butantan já entrou com um segundo pedido de uso emergencial, para aplicar mais 4,8 milhões de doses da CoronaVac que já estão disponíveis. Assim, seriam 10,8 milhões de doses.
A Anvisa também aprovou o uso emergencial de um lote de 2 milhões de doses do imunizante desenvolvido pela farmacêutica AstraZeneca e pela Universidade de Oxford. As vacinas seriam importadas do laboratório indiano Serum, já prontas para aplicação. Embora o Brasil tenha sido excluído do primeiro lote de exportações, a Índia anunciou nesta quinta-feira (21) a liberação das exportações comerciais da vacina, que devem começar a ser enviadas ao Brasil nesta sexta-feira (22).
Mesmo que tenhamos 10,8 milhões de doses da CoronaVac e 2 milhões de doses AstraZeneca/Oxford vindas da Índia, as contas não fecham. Segundo o governo federal, os primeiros grupos a receber as vacinas são: trabalhadores da saúde (5,88 milhões), pessoas de 80 anos ou mais (4,26 milhões), pessoas de 75 a 79 anos (3,48 milhões) e indígenas com idade acima de 18 anos (410 mil). Esse grupo prioritário totaliza 14 milhões de pessoas. Só para essa parcela, portanto, seriam necessárias cerca de 28 milhões de doses. O total aprovado ou em aprovação – as 12,8 milhões de doses da CoronaVac e AstraZeneca/Oxford – não é capaz nem de cobrir na totalidade a primeira dose para esses grupos.
O intervalo de aplicação entre primeira dose e segunda dose é de 28 dias, segundo o Plano Nacional de Imunização (PNI). Logo, a aplicação da segunda dose aos vacinados em 18 de janeiro deveria acontecer em 15 de fevereiro.
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que produz a vacina AstraZeneca/Oxford no Brasil, espera entregar as primeiras doses ao governo brasileiro, com base em insumos chineses, apenas em março. A própria Fiocruz alertou nesta quinta-feira (21) para o risco de falta de vacinas, dizendo que a imunização de toda a população brasileira deve ficar para 2022. “Não tem vacina no mundo para todo mundo, vai faltar vacina”, resumiu, em entrevista ao jornal Valor Econômico, Maurício Zuma, diretor de Bio-Manguinhos, unidade técnico-científica da Fiocruz.
O Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19, apresentado em dezembro de 2020 pelo Ministério da Saúde, informava que o país estava em negociações para obter cerca de 354 milhões de doses. Além dos contratos já firmados (AstraZeneca/Oxford, CoronaVac e Covax Facility), o ministério afirmava que a pasta assinaria memorandos de entendimento com outros três laboratórios: Bharat Biotech, Moderna e Johnson & Johnson.
Entretanto, nenhum contrato de aquisição de doses foi assinado com esses três laboratórios. A Anvisa também não aprovou o uso emergencial de nenhum imunizante desenvolvido por essas farmacêuticas. No documento, o Ministério da Saúde também projetava um acordo de aquisição de 70 milhões de doses da vacina da farmacêutica americana Pfizer e do laboratório alemão BioNTech. Em 7 de janeiro, a Pfizer divulgou nota para explicar que realizou uma série de tratativas para o fornecimento do imunizante Pfizer/BioNTech ao Brasil, mas até o momento nenhum contrato foi assinado. Além de uma proposta feita em agosto de 2020, outras duas já foram apresentadas, sem sucesso.
Déficit de vacinas também acontece regionalmente
A situação não é muito diferente no estado de São Paulo, por exemplo. Comparando o número de doses disponíveis para aplicação com o número de profissionais da saúde que precisam ser vacinados na primeira fase, há um déficit.
As primeiras 6 milhões de doses da CoronaVac foram distribuídas a todos os estados da federação, com base em divisão proporcional à população prioritária e à situação epidemiológica da região. A parcela destinada a São Paulo foi de 1,357 milhão de doses.
Porém, o quantitativo de profissionais de saúde em todo o estado de São Paulo é de cerca de de 1,5 milhão, segundo informações do Ministério da Saúde. Considerando o regime de aplicação de duas doses, o estado precisaria de cerca de 3 milhões de doses para finalizar a vacinação apenas nos profissionais da saúde. O déficit paulista, portanto, hoje é de aproximadamente 1,75 milhão de doses.
Apenas na capital paulista, são 500 mil profissionais de saúde. Mas apenas cerca de 180 mil serão vacinados. Isso porque a capital só recebeu 203 mil doses da CoronaVac. A previsão da prefeitura é a de que outras 203 mil de doses cheguem em 15 dias, para a segunda aplicação dos profissionais que já tiverem sido vacinados. Se esse prazo for descumprido, os 180 mil profissionais que já tomaram a primeira dose correm o risco de ficar sem a segunda. A imunização para idosos acima de 75 anos de idade já foi adiada para março.
O InfoMoney entrou em contato com o Butantan, que evitou responder se vão faltar vacinas para que seja possível aplicar as duas doses. Afirmou apenas que está entregando as quantidades acordadas com o Ministério da Saúde dentro do prazo previsto.
“O acordo prevê que, até 31 de janeiro, 8,7 milhões de doses sejam entregues. Já entregamos 6 milhões e estamos aguardando a aprovação da Anvisa para liberar cerca de 4,8 milhões. Agora, fica a cargo do Ministério da Saúde, do Plano Nacional de Imunização [PNI] a administração das doses e como serão aplicadas na população. O Butantan apenas produz a vacina e entrega aos gestores da Saúde”, explicou a assessoria do instituto por telefone.
Com uma dose, eficácia da imunização é desconhecida
Com exceção da vacina produzida pela Johnson & Johnson, todos os imunizantes em estágio avançado de testes e/ou com uso emergencial aprovado foram testados com regime de duas doses. Especialistas em saúde ressaltam a importância da segunda dose para garantir a eficácia prometida pelos laboratórios contra o contágio por Covid-19.
Albert Bourla, CEO da Pfizer, é um dos defensores dessa posição. Em coletiva de imprensa realizada no dia 8 de dezembro, Bourla afirmou que seria “um grande erro” as pessoas receberem apenas uma dose da vacina da farmacêutica americana. Segundo o CEO, uma única dose da vacina teve eficácia de 52% na prevenção da Covid-19, ante a eficácia total divulgada de 95%. Bourla disse que a proteção parcial poderia ajudar “do ponto de vista epidemiológico e logístico”, mas alertou que seria “um erro muito grande se alguém tentar fazer com apenas uma dose, quando com duas você quase duplica a proteção”.
Cientistas da Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora de fármacos dos EUA, também reconheceram que a resposta imune começou após a primeira dose da vacina da Pfizer/BioNTech. Mas enfatizaram as limitações de divulgar a eficácia de 52% sobre apenas uma aplicação do imunizante. “Os pacientes que não receberam a segunda dose após três ou quatro semanas foram acompanhados por um curto período. Não podemos concluir nada definitivo sobre duração ou profundidade de proteção após uma dose de vacinação, mesmo com porcentagens divulgadas pelos laboratórios”, disseram em comunicado os cientistas Peter Marks e Stephen Hahn.
“Sem dados apropriados para apoiar as mudanças na administração das vacinas, corremos um risco significativo de colocar a saúde pública em risco e minar os esforços históricos em proteger a população da Covid-19. (…) Se as pessoas não sabem quão protetora é uma vacina, elas podem assumir que estão imunizadas e alterar seu comportamento para a tomada de riscos desnecessários”, completam.
A opinião é reforçada por Luiz Vicente Rizzo, diretor superintendente de pesquisa da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein. “A vacina foi concebida para ser usada em duas doses. Não temos noção de qual será a amplitude de eficácia com apenas uma dose. Não há dados para saber se pode ou não pode fazer a aplicação. É com os dados para as duas doses que conhecemos sua eficácia e eficiência”, disse Rizzo ao InfoMoney.
Mauricio Lacerda Nogueira, professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp), complementa que justamente pela falta de dados sobre a eficácia da vacina aplicando apenas a primeira dose, a melhor estratégia seria vacinar um grupo menor, mas com as duas doses. “É melhor vacinar menos pessoas, mas direito. Muito pior do que não ter vacina, é fazer o mau uso dela. Por isso, deve-se vacinar a parte do grupo prioritário que for possível. Sem dados sobre essa possibilidade [de uma dose], não sabemos se funciona e entraríamos em um grau de incerteza muito grande, que considero inaceitável”, afirma.
De acordo com Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), a orientação do Ministério da Saúde, por meio PNI, é guardar a segunda dose, e aplicar a primeira em metade da população-alvo. “Então, se são cerca de 12 milhões, 6 milhões de pessoas devem receber a primeira e o restante deve ser guardado para que seja possível aplicar a segunda dose nessas pessoas. Ou seja, o foco é dar as duas doses para termos garantido o intervalo preconizado em bula de duas a quatro semanas. Os requisitos precisam ser cumpridos juntos: doses e intervalo”, afirma.
Outra estratégia que está sendo adotada para garantir suprimento das vacinas é aplicar duas doses, mas esticar o intervalo de aplicação. Segundo o New York Times, o Reino Unido optou por aplicar a primeira dose de imunizantes contra a Covid-19 no maior número possível de pessoas, no lugar de assegurar estoques para segunda dose. A nação aplica as vacinas Pfizer/BioNTech e AstraZeneca/Oxford.
Porém, Rizzo alerta que esticar o intervalo entre as duas aplicações para além do recomendado por cada laboratório também é uma prática não baseada em dados. “Não existem informações sobre aplicar a dose após 28 dias, por exemplo, no caso da CoronaVac. Qualquer atitude ou opinião, portanto, é baseada apenas em conhecimento prévio de situações semelhantes. As experiências podem, ou não, ser comparáveis.”
Os riscos de aplicar apenas uma dose
O regime de uma dose pode comprometer a imunidade do paciente e, com isso, inclusive aumentar a resistência do novo coronavírus. A reflexão é de Sanjay Mishra, cientista do Centro Médico da Universidade Vanderbilt (Estados Unidos). “Em tais situações, há maior probabilidade de que uma variante do vírus possa surgir e escapar da resposta imunológica e se espalhar rapidamente”, explicou Mishra em artigo para o site americano The Conversation.
“Embora a evolução da resistência a vacinas seja considerada muito rara devido aos imunizantes eficazes e rigorosamente desenvolvidos, modelagens matemáticas sugerem que um vírus resistente pode surgir prontamente se a resposta imune for muito fraca para destruir todos os vírus no hospedeiro. Vacinas apressadas e ineficazes podem produzir anticorpos que não reconhecem e se ligam mal aos vírus, o que pode fazer mais mal do que bem. Mudar a dosagem para superar a escassez de suprimentos é um debate contencioso e contínuo. No entanto, tomar decisões erradas sem evidências científicas adequadas pode ser contraproducente.”
Essa é apenas uma hipótese, porém. “Não há informações precisas para avaliar a resistência do vírus a um regime de uma dose. É concebível que possa contribuir, mas da mesma forma é concebível dizer que a vacinação diminui o espalhamento e, portanto, o surgimento de variantes. Existem explicações para as hipóteses de que aumenta ou de que diminui a resistência”, alerta Rizzo.