As falências do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul antecipam os problemas do Brasil
outubro 9, 2020Foi em 27 de novembro de 1937, 17 dias após a instauração da ditadura varguista com o Estado Novo, que Getúlio promoveu no Rio de Janeiro uma cerimônia para atear fogo nas bandeiras estaduais.
Um a um, os pavilhões queimaram em uma pira, num ato simbólico para demonstrar a união nacional, mas com efeitos práticos de diminuição da autonomia dos estados, uma marca do país até então.
Não foram poucas as revoltas, e até mesmo guerras civis, pelas quais o país passou para assegurar essa União.
Em 1893, a Revolução Federalista opôs os estados do Sul (com exceção de São Paulo, que fazia parte da região naquela época) contra o governo federal. A guerra acabou com 12 mil mortos, sendo que 2 mil destes foram degolados.
A vitória das forças de Floriano Peixoto levaria ainda a um fato inusitado. Descartando outras sugestões, o governador Hercílio Luz daria o nome de Florianópolis, “cidade de Floriano”, à capital catarinense. Em suma, o General de Ferro, que mandou fuzilar 200 pessoas na ilha, terminaria homenageado.
As razões dessas revoltas não chegam a estranhar. Em um país com 15 milhões de habitantes e 1 milhão de eleitores (dos quais apenas 336 mil, ou 2,2% da população de fato, votaram), o federalismo ganhava um peso ainda maior.
Até a ditadura varguista, os estados ainda mantinham seus próprios exércitos, com canhões e tanques que frequentemente foram usados para impedir a intervenção federal.
De lá pra cá, porém, essa história mudou radicalmente. Os estados brasileiros foram consistentemente perdendo autonomia, uma ironia com a própria ideia de República Federativa do Brasil e algo que gera prejuízos imensos.
Dando um salto, já na Constituição Federal de 1988, nossa 7ª “Carta Magna”, a ausência de autonomia se tornou evidente, até mesmo na maneira de arrecadação e sustento. A União, por meio de contribuições, passou a tomar para si boa parte do bolo de arrecadação de tributos.
Tributos, no caso, em função da distinção básica entre contribuição (algo arrecadado para fim específico) e impostos (fins amplos). O truque é simples. Pela Constituição, a arrecadação de impostos deve ser dividida pela União com os estados e municípios, enquanto as contribuições não entram na partilha.
O resultado é que hoje a União concentra 70% dos recursos, contra 24% dos estados e 6% dos municípios.
A situação não chegava a criar tantos problemas quando, seguindo o exemplo do Governo Federal, estados criavam moeda e se financiavam pela inflação, por meio de seus bancos estaduais.
A farra, que levou o Brasil a uma inflação de 14 quatrilhões de porcento em 25 anos, geraria efeitos perversos no aumento da desigualdade e pobreza, mas sustentava, na época, os gastos estaduais.
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Forçados pelo Plano Real e, posteriormente, pela Lei de Responsabilidade Fiscal a viver com o que arrecadam, os estados passaram a enfrentar problemas graves.
A ausência de autonomia, porém, não se restringe a arrecadação. Os entes federativos estão sujeitos ainda a regras tributárias, administrativas e previdenciárias pautadas em Brasília, com pouca ou nenhuma distinção entre si.
O ambiente de concorrência que se vê em outras federações, como a disputa economica entre os estados do Texas e da Califórnia nos EUA, inexiste por aqui.
Pegue por exemplo o motivo pelo qual inúmeras empresas têm se estabelecido em Austin, capital texana, fugindo da região de São Francisco, na Califórnia.
No Texas, as regras de construção são muito mais flexíveis, fazendo do estado um local relativamente mais barato para se estabelecer, algo que gera um impacto significativo no custo das empresas.
Enquanto no Vale do Silício uma pessoa precisa gastar US$ 64 mil, em média, em moradia, em Austin, o custo cai para US$ 35 mil. São US$ 29 mil a menos em custos, o que torna o local atraente para jovens empreendedores.
A concorrência entre estados promove por lá uma disputa para melhorar o ambiente de negócios, inovação e qualidade de vida.
Os instrumentos fiscais também se distinguem de estado para estado, com impostos sobre patrimônio e Imposto de Renda variando de acordo com o ente federativo.
Em nossa falsa Federação, os estados brasileiros ficam dependentes de Brasília para agir. Não há grande inovação e os problemas se acumulam.
Essa ausência de autonomia se estende por outras áreas. Pegue, por exemplo, os mínimos constitucionais em saúde e educação.
Eles determinam que estados invistam 15% e 20% do seu orçamento nestas duas áreas, respectivamente. O problema, entretanto, é que a demografia dos estados é distinta.
Um estado demograficamente mais jovem, como a Bahia, é obrigado a aplicar os mesmos percentuais que um estado mais velho, como o Rio Grande do Sul ou o Rio de Janeiro.
O resultado é que, enquanto o número de alunos na rede estadual gaúcha caiu de 1,5 milhão para 900 mil nos últimos 20 anos e a população idosa cresceu 181% no período, as obrigações de gastos permanecem iguais.
Enquanto os fluminenses com mais de 60 anos somam 19,3% da população, e os gaúchos 19%, os baianos na mesma faixa etária somam 14,3% (abaixo da média nacional de 15,4%).
Uma população mais velha demanda invariavelmente mais recursos investidos em saúde, mas não apenas isso. Cria-se também uma obrigação maior em gastos com aposentadorias.
Não por coincidência, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro são os estados que mais gastam com aposentados. No funcionalismo público, a situação é escabrosa.
Cerca de 56% dos funcionários públicos gaúchos são aposentados, consumindo a maior parte do gasto com pessoal que deveria atender a população via serviços públicos.
Na economia, a questão também é impactada pelo modelo tributário nacional. Com fortes benefícios para o setor primário, os dois estados acabaram desperdiçando seu potencial industrial.
Graças a legislações federais como a Lei Kandir, que isenta exportações de ICMS, e os impostos em cadeia que fazem a indústria pagar o triplo de tributos que o setor primário, ambos os estados se tornam exportadores, sem complexidade na sua cadeia de produção.
Fôssemos de fato uma federação, poderíamos ter experimentos a nível local. Uma reforma da Previdência ou Tributária em estados mais velhos, cujos resultados pautariam uma discussão nacional.
Veja, demografia é uma questão inexorável no Brasil. Estamos ficando mais velhos, e nada indica que isso irá mudar. Olhando hoje para ambos os estados mais “quebrados” do país, poderíamos entender os efeitos dessa mudança estrutural e agir para mudar a situação a nível nacional.
Nosso olhar, entretanto, não costuma captar experiências locais. O planejamento aqui se dá de Brasília para o restante, e não o contrário.
Tome um outro exemplo, o dos gastos com pessoal. Enquanto a economia do Rio de Janeiro foi a que menos cresceu nos últimos 20 anos, os gastos com pessoal foram os que mais cresceram no país, quase o triplo da média nacional.
O desequilíbrio das finanças fluminenses é uma ameaça à qualidade do serviço público ofertado para a população. Poderia ser um alerta sobre como um estado com uma média de idade maior, que não promoveu reformas administrativa e previdenciária a tempo, falha em garantir atendimento de qualidade em setores essenciais, como saúde, educação e segurança.
No mesmo período, o estado do Rio de Janeiro promoveu isenções fiscais da ordem de R$ 138 bilhões. Empresas do setor de bebidas receberam créditos de R$ 700 milhões e geraram 60 empregos. As do setor automotivo, por sua vez, tiveram fábricas inteiras financiadas pelo governo estadual.
Uma experiência trágica para o Rio, porém ignorada pelo restante do Brasil. A legislação federal sobre o setor de petróleo, por sua vez, impediu que investimentos estrangeiros fossem feitos no pré-sal entre 2008 e 2013, justamente o período no qual o barril de petróleo chegou a ultrapassar os US$ 100.
Milhares de empregos deixaram de ser gerados. Tudo porque um gabinete em Brasília precisa legislar sobre o caso.
Olhando as experiências destes dois estados, e principalmente entendendo que o Brasil irá atingir a mesma média de idade da população, poderíamos aprender sobre a necessidade de reformas, antecipando assim um problema que iremos ter em 10 anos.
Temos uma oportunidade única de olhar exemplos práticos de como a situação tributária, administrativa e toda nossa legislação se comporta com uma população envelhecendo rapidamente.
Preferimos, entretanto, ignorar os números. Seguimos pautando as discussões por Brasília, desperdiçando uma oportunidade que poderia esclarecer muitos dos nossos problemas.
Os dois estados de população mais velha do país são também os dois em pior situação fiscal. Se isso não é capaz de nos dar um alerta e garantir que outros estados possam se ajustar a tempo, é sinal de que falhamos no básico: aprender com os próprios erros e experiências.