A saga do difícil processo de ajuste fiscal brasileiro
maio 6, 2023O Brasil convive com desequilíbrio fiscal secular, compensado historicamente por períodos de alta inflação ou de crescente endividamento, impedindo-o de conviver com taxas de juros de países desenvolvidos. Em 1994, o Plano Real pôs fim à hiperinflação, trocando-a por maior carga tributária e mais endividamento.
Do real até 2015, as tentativas de ajuste fiscal foram realizadas somente pelo lado da receita, pois a despesa primária do governo federal cresceu sistematicamente como proporção do PIB, saindo de 10,8%, em 1991, para 19,4% do PIB, em 2015.
Em 2018, ao final do governo Temer, essa proporção caiu para 19,3%; no final do governo Bolsonaro, em 2022, chegou a 18,2%. Neste período de governos de centro e de direita, houve “controle” de despesas, porém nenhum “corte” de despesa obrigatória: o ajuste decorreu de a despesa cair como proporção do PIB.
Todavia, na campanha presidencial do ano passado, os dois principais candidatos se comprometeram com pautas (aumento real do salário-mínimo, reajuste salarial dos servidores etc.) que indicavam que o processo de ajuste fiscal teria de reiniciar de um patamar superior ao que seria obtido em 2022 em pelo menos 1,1% do PIB.
Logo após as eleições, o candidato eleito cumpriu suas promessas, com a PEC da Transição, e a despesa primária como proporção do PIB projetada para 2023 se elevou para 19,3% do PIB. Não deveria haver surpresas nisso para os que acompanham o cenário político, pois não houve estelionato eleitoral e algo semelhante ocorreria se seu principal oponente tivesse ganho. A economia política clamava por essa recomposição orçamentária, se considerarmos que a execução do investimento público sequer compensaria a depreciação do estoque de capital público, os servidores públicos estavam sem reajuste salarial desde 2019 e assim por diante.
Contudo, os agentes de mercado, em geral, recepcionaram essa PEC como a primeira etapa de uma nova trajetória de expansão fiscal, “à la era Dilma”. Acrescente-se a isso entrevista do presidente Lula à jornalista Natuza Nery, reivindicando mudança na meta de inflação para 4,5%, chegamos à narrativa de que teríamos uma inflexão total na política fiscal na direção de mais gasto público. Isso levaria a um maior impulso da demanda agregada e consequentes pressões inflacionárias e juros mais elevados.
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Nesse ambiente, os preços dos ativos estressaram, aproximando-se daqueles que vigiam em 2014, embasados também por analistas políticos que construíam um ministro da Fazenda subserviente ao presidente, disposto a sempre flexibilizar a restrição orçamentária. Contribuiu para essa visão a não reoneração dos combustíveis, em janeiro, embora os discursos do ministro Fernando Haddad e de seus comandados fossem firmes na direção do ajuste fiscal.
No fim de fevereiro, o anúncio da reoneração dos combustíveis, ainda que maculado pelo temporário imposto sobre as exportações, de natureza antimercado, começou a alterar a visão de um ministro subserviente. A confirmação posterior que tal imposto seria temporário confirmou essa melhoria da visão sobre Haddad.
No fim de março, eis que veio a grata surpresa do anúncio do novo marco fiscal com limite de despesas e incentivo ao fim de distorções tributárias, deixando claro o desejo do governo de diminuir o alto nível de subsídios tributários que existe desde 2015, quando este atingiu 4,6% do PIB, vindo de 2% do PIB, em 2006.
Logo, não há dúvida que o novo marco fiscal aponta na direção de contenção de despesa. Enquanto sociedade, explicita não ser razoável esperar que a despesa continue crescendo em proporção do PIB, como ocorreu até 2016. De fato, o ajuste proposto segue a mesma diretriz que vige desde o presidente Temer, com controle da despesa como proporção do PIB, mas numa velocidade compatível com a economia global pós-pandemia e com o projeto eleito pelas urnas.
A propósito, no período entre 1901 e 2022, considerando o gasto no início do mandato presidencial, e aquele verificado no fim dele, verifica-se sistematicamente variação positiva da despesa primária em relação ao PIB (ver tabela).
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As exceções ocorreram na primeira guerra mundial (na época, o orçamento era flexível e muito dependente das receitas do setor externo), nos períodos ditatoriais de Vargas (1930-45), Castelo Branco, Garrastazu Médici e João Figueiredo, ou do presidente não-eleito Temer, assim como nos conturbados períodos democráticos de Vargas (1951-54), Collor e Bolsonaro, marcados pelo suicídio, impeachment e pandemia, respectivamente.
Nesse sentido, as projeções para despesa, em proporção do PIB, para o fim do Lula 3, com marco fiscal aprovado e premissas conservadoras (PIB baseado no Focus, custo real da dívida de 4%, que é acima da média histórica), indicam seu retorno para o mesmo nível que vigia ao fim de 2022. Se o marco fiscal ganhar credibilidade, poderá ocorrer substancial melhora em todas essas premissas, o que vai acelerar ainda mais o processo de queda da despesa (% PIB).
Logo, o obstáculo passou a ser o mesmo com o qual o governo se depara desde 2016 para obter o superávit que torna a dívida sustentável: conter as despesas e recuperar a receita líquida em 19% do PIB, média obtida quando se obteve superávit. Haddad sinaliza querer superar esse obstáculo reformando as despesas obrigatórias e eliminando os subsídios tributários concedidos de maneira inefetiva. Trata-se da mesma agenda que vige desde 2016, que afasta o risco de dominância fiscal, mas explicita a dificuldade de avançar nessa direção.
É o momento da sociedade cooperar para enfrentar esse obstáculo, e não apenas apontar as dificuldades para superá-lo, assim como do Parlamento para amarrar as “pontas soltas” do projeto de Lei Complementar que tramita no Congresso, a fim de que o marco fiscal ganhe credibilidade. Esses movimentos são fundamentais para que essa agenda seja cumprida e o Brasil conviva com juros reais baixos.