A pandemia (e o home-office) vão acabar com o Vale do Silício?
outubro 11, 2020NOVA YORK – Se é possível dizer que houve um ganhador na pandemia, sem dúvida foi o setor de tecnologia.
Em questão de semanas, o serviço de videoconferência Zoom entrou para o vocabulário de milhões de pessoas mundo afora, tomando o lugar de uma das marcas mais conhecidas e antigas da internet, o Skype.
O consenso entre os analistas é de que a pandemia acelerou em anos a digitalização da vida das pessoas e das empresas, especialmente no setor de serviços.
Quem já tinha uma operação sólida de comércio eletrônico nadou de braçada. Quem estava atrasado teve de correr atrás do prejuízo.
O clima deveria ser de festa no Vale do Silício. Mas há quem enxergue sinais de mau agouro: será que a pandemia será o começo do fim da hegemonia do maior centro de inovação do planeta?
Num artigo publicado no Medium, o jornalista e editor Steve LeVine aponta a importância do acaso e das interações aleatórias como um dos motores mais importantes e menos compreendidos para o sucesso da indústria de tecnologia americana.
“Certo dia, Zuckerberg e seus amigos estavam andando por Palo Alto quando viram um rosto conhecido. Era Sean Parker, cofundador do Napster, o serviço de compartilhamento de músicas”, escreve LeVine.
“Já na semana seguinte, Parker tinha se mudado para a casa onde Zuckerberg estava criando o Facebook. No final daquele verão, ele abriria o canal que levou ao primeiro grande investimento na empresa – US$ 500.000 de Peter Thiel.”
A história do Facebook, que hoje vale US$ 750 bilhões na bolsa, é parecida com a de tantas outras que fazem parte de nosso dia-a-dia digital: jovens empreendedores que circulam nos mesmos ambientes, frequentam as mesmas festas, conhecem as mesmas pessoas.
Gente que pode fazer a diferença no futuro de uma startup existe em toda parte. Tantas concentradas no mesmo lugar? Só no Vale do Silício, um corredor de cerca de 80 quilômetros entre San Francisco, ao norte, e San Jose, ao sul.
Esse pequeno pedaço de terra nos Estados Unidos tem o terceiro maior PIB per capita do mundo, atrás apenas de Zurique (Suíça) e Oslo (Noruega), de acordo com o centro de estudos Brookings Institute.
LeVine argumenta que o trabalho remoto pode acabar com as condições únicas que transformaram o norte da Califórnia em uma região admirada, estudada e dificilmente copiada.
O Google já anunciou que seus cerca de 200.000 funcionários poderão continuar trabalhando de casa até meados do ano que vem.
Mark Zuckerberg disse esperar que até metade dos seus quadros trabalhe à distância permanentemente na próxima década.
A política mais agressiva foi do Twitter: a companhia anunciou que todos os funcionários podem fazer home office para sempre, se quiserem.
O corredor tecnológico da Califórnia já era uma das regiões de maior custo de vida nos Estados Unidos, e a pandemia deixou os imóveis ainda mais longe do alcance dos mortais.
O preço médio de uma casa no condado de San Mateo, que engloba parte do Vale do Silício, aumentou 19% nos últimos 12 meses e chegou a US$ 1,73 milhão.
Com esses valores, é mais provável que o dono da casa já tenha vendido sua startup, não que tenha planos de começar um novo negócio na garagem.
LeVine reconhece que nem todas as “serendipidades” são dramáticas a ponto de dar origem a companhias bilionárias. Mas a colaboração e os encontros casuais são parte do ethos das empresas de tecnologia e são essenciais não só para a faísca inicial de uma startup, mas para seu sucesso de longo prazo.
A sede da Apple, um edifício circular que custou US$ 5 bilhões e foi inaugurado há três anos, foi idealizada por Steve Jobs com o objetivo de promover interações e conexões casuais entre os 12.000 funcionários que o ocupam.
O fundador da empresa “acreditava muito na força dos encontros acidentais e sabia que a criatividade não é uma empreitada solitária”, nas palavras de Ed Catmull, um dos fundadores do estúdio Pixar.
Mas Tim Cook, presidente da companhia, afirmou no mês passado que algumas das mudanças trazidas pela pandemia da Covid-19 serão duradouras.
“Não acredito que vamos voltar ao que era antes porque descobrimos que algumas coisas funcionam muito bem virtualmente”, disse Cook.
Enquanto a maioria das empresas tenta enquadrar o trabalho à distância como um potencial ganho de qualidade de vida para os funcionários – apesar de a decisão ter sido imposta pelas circunstâncias –, Reed Hastings faz uma avaliação pessimista.
“Não vejo nada positivo em trabalhar de casa”, diz Hastings, fundador e co-CEO da Netflix, uma das empresas que mais cresceram durante a atual crise e que foi a tábua de salvação para muita gente durante o período de isolamento compulsório.
Em tom de brincadeira, ele afirmou ao Wall Street Journal que seus funcionários vão voltar ao escritório 12 horas depois da aprovação da vacina. “Provavelmente seis meses depois da vacina”, respondeu ele, falando sério.
Obituário requentado
Parafraseando a célebre tirada de Mark Twain, a morte do Vale do Silício já foi muito exagerada em outras ocasiões. O estouro da primeira bolha da internet, há 20 anos, foi uma delas.
A ascensão das companhias chinesas, especialmente em setores críticos como a inteligência artificial, foi outra.
Em ambos os casos, as previsões mais pessimistas não se confirmaram. Mas agora, além da potencial dispersão geográfica dos talentos – que só é possível graças às ferramentas desenvolvidas pelas próprias empresas de tecnologia, diga-se -, existe uma outra ameaça, potencialmente ainda mais séria: a regulamentação.
Um dos pilares das startups americanas é o desprezo por leis e regras existentes.
Companhias como a Uber cresceram apesar de ignorar proteções trabalhistas. O Airbnb virou de ponta-cabeça o negócio da hospitalidade apesar de não seguir as mesmas regras impostas aos hotéis.
Os pioneiros abrem o caminho, e os legisladores que se virem para acompanhá-los.
Esse ambiente de permissividade, entretanto, pode estar com os dias contados. Ao mesmo que inspiram deslumbramento com sua audácia e seu crescimento que desafia a lógica, as gigantes da tecnologia também são vistas com cada vez mais desconfiança.
Uma pesquisa do instituto GQR indica que 85% dos americanos acham que as grandes empresas de tecnologia têm poder demais. Isso significa práticas monopolistas, violações de privacidade, falta de controle – deliberado ou não – do conteúdo que ajudam a disseminar e um poder desmedido em relação às empresas iniciantes.
As companhias que se beneficiaram do ambiente fértil para ideias e inovação tornaram-se monólitos que agora tentam esmagar os pequenos que desafiam sua dominação – ou então comprá-los.
Não há exemplo melhor que o Instagram, uma rede social de formato inovador que criou uma maneira simples e divertida de manter contato com amigos. Ameaçado, o Facebook adquiriu o serviço em 2012, por US$ 1 bilhão.
Sob a nova administração, o que era essencialmente um álbum de fotos compartilhado hoje virou um Frankenstein ao qual se agregam cópias dos sucessos dos concorrentes.
Para ficar nos dois casos mais recentes: a função Stories é uma imitação do Snapchat; o Reels é um plágio descarado do TikTok.
Um relatório publicado na terça-feira pela Subcomissão de Antitruste da Câmara dos Estados Unidos afirmou que o Facebook exerce poder de monopolista nas redes sociais, “adquirindo, copiando ou matando seus concorrentes”.
Uma das soluções propostas no documento é a separação dos negócios. Outra possibilidade é que qualquer aquisição por parte das gigantes (Amazon, Apple, Facebook e Alphabet, a holding que controla o Google) seja considerada anticompetitiva – uma inversão no ônus de comprovar que o negócio não será prejudicial para os consumidores.
Os críticos do que se convencionou chamar de Big Tech afirmam que, se não houver algum tipo de intervenção – uma perspectiva real caso o democrata Joe Biden seja eleito presidente –, o incentivo para inovar pode definhar.
Para o espírito de rebeldia que permeia o Vale do Silício, seria um golpe muito mais duro do que qualquer pandemia.
Tecnologia para quê?
Outra crítica cada vez mais comum às empresas que saem da Califórnia e conquistam o mundo diz respeito ao tipo de problema que elas se propõem a resolver.
“O Vale do Silício é conhecido por seus “tech bros” – os guerreiros que usam agasalho com capuz e são acusados de criar produtos e serviços que vão cuidar das coisas que suas mães não fazem mais por eles”, escreve o investidor Alexa Lazarow em Out-Innovate: How Global Entrepreneurs –from Delhi to Detroit – Are Rewriting the Rules of Silicon Valley (Superar em inovação: como empreendedores globais – de Nova Déli a Detroit – estão reescrevendo as regras do Vale do Silício, em tradução livre).
“Não deveria ser surpresa. Empreendedores criam empresas baseadas em sua experiência. E a experiência de uma pessoa de 21 anos é curta, local e míope.”
Lazarow afirma que menos de 20% das startups na Califórnia são criadas por mulheres. Apesar da grande presença de asiáticos, o setor de tecnologia ainda emprega pouquíssimos negros. Estima-se que somente 1% das companhias que recebem capital de risco tenham fundadores negros.
Em um mundo cada vez mais ciente da importância de uma cultura diversa, a homogeneidade do Vale do Silício vem sendo questionada como nunca antes.
Outros polos dentro dos próprios Estados Unidos começam a chamar a atenção. Nenhum deles tem o tamanho, a influência ou a mística que envolvem o norte da Califórnia. Mas a pandemia pode acelerar também essa mudança.
Um dos polos que mais vêm crescendo fica no estado de Utah e conta com cerca de 6.500 startups, quatro delas unicórnios.
Dois deles – Pluralsight e Domo – já estão na bolsa, e um terceiro, a Qualtrics, foi comprado pela gigante alemã SAP por US$ 8 bilhões em agosto.
O site Crunchbase, que acompanha investimentos em startups, coloca Utah em sexto lugar no ranking que mede o capital de risco investido por habitante.
Utah é um estado mais conhecido por suas belezas naturais e por ser a sede da Igreja de Jesus Cristos dos Santos dos Últimos Dias (também conhecida como igreja mórmon).
Talvez no futuro sua fama se deva ao Silicon Slopes, como ficou conhecido seu cluster tecnológico (o nome é referência às estações de esqui do estado).