Entre o cinismo e o sentimentalismo: quanto vale uma vida?
abril 5, 2020Qual o valor econômico de uma vida humana? Para muitos, a pergunta soa ofensiva. Afinal, a discussão sobre o valor de uma vida se daria no campo da filosofia, jamais da economia. Esse raciocínio faz sentido – o valor de uma vida, de fato, é intangível e não pode ser calculado apenas com métricas econômicas -, mas esse sentimentalismo não nos informa sobre o que deve ser feito em situações difíceis como a atual pandemia. Ficar parado refletindo sobre questões filosóficas não vai ajudar ninguém.
Na peça “O Leque de Windemere”, escrita pelo britânico Oscar Wilde, um interessante diálogo entre duas personagens – Cecil Graham e Lorde Darlington – aborda essa questão com um toque de humor inglês.
“O que é um cínico?”, indaga Cecil Graham num dado momento. No que responde o Lorde Darlington: “É alguém que sabe o preço de tudo e o valor de nada”. A tréplica de Graham é ácida: “Já o sentimentalista, meu caro Darlington, é aquele que vê um absurdo valor em tudo, mas não sabe o preço de mercado de nada”.
Pois bem: os economistas Michael Greenstone e Vishan Nigam, da Universidade de Chicago, dedicaram-se à cínica tarefa de calcular o preço de mercado da vida humana.
Se você leu minha última coluna, este novo estudo responde às principais críticas
Antes de resumir o que eles descobriram, vale a pena um flash-back para meu último texto aqui na InfoMoney – “Quarentenas podem beneficiar a economia no longo prazo”. Nele, resumi alguns estudos publicados nos dias anteriores que sustentavam a conclusão. Um deles calculava a perda de capacidade produtiva causada pela pandemia – afinal, quanto mais trabalhadores morrem, menor o potencial produtivo após o pico do Covid-19.
Duas críticas surgiram a partir daí. Oscar Wilde diria que uma é cínica e a outra é sentimentalista.
Os cínicos alegaram que a maioria dos mortos por Covid-19 são idosos já aposentados, portanto a morte deles não reduziria a força de trabalho ou o potencial produtivo da economia. Já os sentimentalistas apontaram a dimensão intangível presente no valor da vida, pois seres humanos não são apenas máquinas no processo produtivo – além de trabalhadores, somos pais, mães, avós, irmãos, amigos, etc.
As duas críticas estão corretas, mas nenhuma delas se aplica ao estudo que descrevo neste novo texto – o de Greenstone e Nigam, da Universidade de Chicago. Eles adotaram uma estratégia diferente para abordar o assunto, controlando pela idade dos mortos e considerando custos econômicos além da perda de capacidade produtiva.
O valor de uma vida
Michael Greenstone e Vishan Nigam se dedicaram a entender qual o valor econômico de uma vida, mas com uma abordagem diferente e que vai além do potencial produtivo.
A base para as estimativas foi a observação do comportamento de americanos frente a problemas de saúde. Em tempos normais, quanto as pessoas aceitam pagar para diminuir sua probabilidade de morte em 1%?
Ao calcular o preço que se aceita pagar por uma redução na probabilidade de morte (o objetivo de diversos serviços médicos), é possível chegar ao “preço de mercado” da vida humana – ou valor de uma vida estatística (VSL, na sigla em inglês). É importante notar que este método tem como base o valor econômico que as famílias e pacientes atribuem à vida. Não há juízo de valor por parte dos pesquisadores, apenas a observação de um comportamento passado.
Pessoalmente, considero essa abordagem muito interessante e frutífera. “Isto porque vocês, economistas, são todos uns cínicos!”, dirão alguns leitores revoltados. A bem da verdade, eu responderia o oposto: há cinismo neste tipo de cálculo, mas trata-se de um poderoso argumento que aumenta a capacidade de persuasão dos sentimentalistas e pode salvar vidas neste momento de pandemia.
Qual a conclusão do estudo?
Greenstone e Nigam reúnem as observações sobre o valor econômico da vida e os principais modelos epidemiológicos sobre o Covid-19, concluindo que medidas de quarentena e distanciamento social fazem sentido sob um ponto de vista econômico e materialista.
Como referência, utilizam o número de vidas salvas por uma política severa de distanciamento que dure até 4 meses, conforme calculado por modelos do Imperial College que auxiliaram a tomada de decisão de governos por todo o mundo.
Isto é, multiplicando o valor estatístico da vida pela quantidade de vidas salvas, é possível estimar o valor econômico gerado por medidas de distanciamento social, como quarentenas.
O valor da vida estatística, por faixa etária, é o seguinte:
Faixa etária | Valor estatístico da vida | Vidas salvas com distanciamento social |
0 a 9 anos | U$ 14,7 milhões | 442 |
10 a 19 anos | U$ 15,3 milhões | 1.381 |
20 a 29 anos | U$ 16,1 milhões | 6.892 |
30 a 39 anos | U$ 15,8 milhões | 17.455 |
40 a 49 anos | U$ 13,8 milhões | 31.080 |
50 a 59 anos | U$ 10,3 milhões | 133.234 |
60 a 69 anos | U$ 6,7 milhões | 413.949 |
70 a 79 anos | U$ 3,7 milhões | 561.694 |
80 anos ou mais | U$ 1,5 milhão | 595.824 |
O resultado é que o valor econômico das vidas salvas pelas medidas de distanciamento chegaria a U$ 7,94 trilhões de dólares, mais de 40% do PIB americano ou 4 vezes o que o governo pretende gastar para manter as pessoas em casa. Isto é: o custo econômico da recessão provavelmente será menor do que o custo econômico decorrente das vidas ceifadas na pandemia.
Vale notar que este não é o único benefício econômico das medidas de distanciamento. A morte de milhões de pessoas num curto espaço de tempo poderia causar traumas ainda mais profundos entre a população.
Alexandre Schwarstman, meu colega no InfoMoney, foi feliz ao parafrasear Churchill para abordar o assunto: “nos é dada a escolha entre a pandemia e a recessão; se escolhermos a pandemia, teremos também a recessão”, escreveu, lembrando utilizada pelo britânico para recusar negociações com Hitler.
Caso decidamos seguir a vida normalmente para salvar empregos, rapidamente a realidade nos obrigará a voltar à quarentena. Mesmo que nossa prioridade seja a maximização do bem-estar econômico, o ideal é usar este momento para salvar vidas: fique em casa.
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