A sociedade de confiança de Alain Peyrefitte
julho 18, 2020*Mariana Marcolin Peringer
A sociedade de confiança (1995), de Alain Peyrefitte (1925–1999), é uma obra sobre a natureza do desenvolvimento que questiona, de forma muito pertinente, o nosso modo de vida em sociedade. O que move uma sociedade? Traços imateriais de uma civilização como autoridade, religião, reflexos históricos, tabus, moral e valores são deixados em segundo plano, mas o espírito de uma época (cultura), manifestado em nossas crenças e aspirações, é soberano na sociedade.
Essa obra argumenta que a confiança é o pilar da sociedade, imprescindível para que exista a troca e a cooperação entre indivíduos e grupos, assim como o respeito pelos governos. Assim, Peyrefitte lança as bases para comparar etologia[1] e desenvolvimento econômico, social, cultural e político.
Mesmo partindo da origem antropológica do desenvolvimento, o autor esclarece que os agentes dinâmicos da sociedade podem ser sufocados pelo peso de um Estado invasor. Peyrefitte conclui que o desenvolvimento reside na confiança concedida à iniciativa pessoal, à liberdade de exploração e invenção – liberdade essa com suas contrapartidas, seus deveres, seus limites e sua responsabilidade.
No entanto, com a liberdade sendo tão pouco praticada no mundo atual, é provável que a doença e a violência persistam ainda por muito tempo no planeta.
A busca pelas origens
Investigando as origens do desenvolvimento econômico, poderíamos falar sobre a Revolução neolítica que transformou caçadores em camponeses do campo, mas esse processo levou milênios. O primeiro império da história foi o Império Colonial Português, considerado o mais antigo dos impérios coloniais europeus modernos, tendo início em 1415 com a conquista de Ceuta e perdurando por mais de 600 anos. É necessário lembrar também a clássica distinção entre espanhóis, portugueses, ingleses e holandeses: os dois primeiros, interessados na expansão territorial através de conquistas; e os dois últimos, interessados na expansão comercial, através da compra e venda de mercadorias.
A descoberta da América e a partilha da África também são referenciais, porém o fenômeno foi mais notável nos últimos 200 anos – o progresso, o desenvolvimento, o crescimento e a modernidade da era pós-industrial. A modernização teve início na Europa Ocidental, passando pela América do Norte e chegando muito mais tarde, lentamente, ao sul da Europa, América Latina e outros continentes. Só no século XIX chegou ao Japão e, ao final do século XX, aos tigres Coreia do Sul, Hong Kong, Singapura e China.
Para descrever o fenômeno da segunda metade do século XVIII, em que a Inglaterra se apresentava como uma sociedade próspera, dinâmica e criativa, características das sociedades desenvolvidas, o autor usa uma metáfora —a da decolagem — como um avião que arranca da pista em um ponto preciso, num movimento guiado pelas rodas e, em alta velocidade, num único golpe, alça voo. No entanto, ele pondera que processo de desenvolvimento das sociedades resulta de uma combinação de causas e condições muito mais complexa que o simples encontro da pressão do ar com a resistência da asa.
Alguns historiadores datam a decolagem econômica como 1760; outros, 1770; outros ainda, que a Revolução Industrial ocorreu entre 1575 e 1620. Entretanto, fatos econômicos e sociais não admitem rupturas: as sociedades divergiram, como resultado de processos lentos e pouco visíveis que, uma vez em movimento, prosseguem, encadeiam-se e interagem como uma energia nuclear — uma divergência cumulativa que se alimenta da própria energia de forma irreversível, que progride por si mesma sob o efeito da energia que não para de gerar.
Certamente, a preparação para uma sociedade tão dinâmica levou tempo. No século XII, mesmo que a massa da população estivesse na agricultura, os camponeses, aleatoriamente, obtiveram excedentes agrícolas, utilizando-os para pagar rendas senhoriais. O excedente passou a ter uma importância muito especial.
O lucro era tabu
Não se pode ignorar que a evolução econômica, política, social e cultural desenvolveu-se sob o olhar da religião. Até o século XVI, a Igreja de Roma era a maior proprietária de terras de toda a Europa, a maior fornecedora e compradora dos produtos do solo e, ao mesmo tempo, a maior investidora e a maior construtora — primeira financiadora, enfim, de um século dedicado ao estudo e à formação das ideias.
Difícil mensurar o poder de inibição da Igreja, mas sabemos que já reprovou o linho, as carnes, o vinho, a música e até o riso. A capacidade de intromissão da Igreja em diversos domínios da experiência humana foi claro, principalmente nas relações de troca. O lucro era um grande tabu, visível em alegações como “não é possível ser negociante e bom cristão” ou ”o lucro de um é prejuízo de outro”, semeando, assim, a desconfiança do povo em relação ao comércio. A Igreja oscilou entre desconfiança moral e aceitação prática, buscando um equilíbrio para o bem comum: o comércio foi paulatinamente permitido, dando origem ao “estado de bem-estar” que, sob o pretexto de praticar o bem comum, passa a interferir de forma autoritária na sociedade.
Uma sociedade de liberdade
A segunda metade do século XVI marca o domínio comercial e financeiro de Amsterdã, firmado na Revolta dos Países Baixos, que culmina na secessão das sete províncias do Norte. Essas províncias, de cunho calvinista burguês, criaram uma união própria – a República Unida da Holanda – que, na prática, significou a separação da Espanha.
Essas províncias do Norte passam a receber um grande fluxo imigratório por não terem hábitos de governo central e serem parcimoniosas nas regulações sobre a atividade econômica, ou seja, por terem um caráter liberal. Amsterdã passa a ser não só o centro do comércio mundial, mas também de uma grande rede de informações econômicas e comerciais. A fiabilidade dessas informações era tamanha que agentes de companhias francesas e inglesas das Índias lá buscavam os números precisos das cargas de seus próprios navios. A confiança inspirada por um mercado ou banqueiro holandês tornou-se proverbial, porque “o comércio exige confiança entre os particulares” e a confiança seria como um instrumento de trabalho.
A etologia do desenvolvimento
Por meio da etologia, observamos que os móbiles humanos, ou seja, o que conduz a ação, a causa, a razão, o motor do movimento humano são os mesmos desde as suas origens, ficando isso claro no desenvolvimento das civilizações, na história dos fatos econômicos, políticos e sociais, e nas ideias filosóficas, religiosas, econômicas e antropológicas. A história permite determinar as circunstâncias, mas é a antropologia que foca na busca de sentido. É através da antropologia que entendemos a importância do fator humano para o progresso, porém ela não explica o acontecimento.
Em antropologia, ethos é uma síntese dos costumes de um povo, incluindo traços característicos de um grupo humano qualquer que o diferenciam de outros grupos sob os pontos de vista social e cultural, ou seja, a identidade social de um grupo. O termo ethos significa o modo de ser, o caráter, o comportamento do ser humano e, a título de curiosidade, deu origem à palavra ética.
O ethos da confiança seria, assim, as disposições mentais e os comportamentos que libertam o homem individual e social da obsessão de segurança, da inércia dos equilibrados – mascarados pelo peso das autoridades – ou da poeira dos costumes. O ethos da confiança não se ordena! Portanto, considerá-lo como a matriz de uma sociedade é remeter para a interioridade, afirmando que a sociedade não é “fabricada”. Resulta da ação humana, mas não de um projeto humano, como a fórmula clássica de Adam Ferguson: “result of human action but not of human design”.
“Não saias para fora de ti, entra em ti mesmo, a verdade habita no interior do homem. É em nós que reside o desenvolvimento. Fazê-lo frutificar depende de nós.”[2][1]
Por trás das combinações de capital e trabalho, das mutações tecnológicas e sociais, das estruturas de trocas e das dinâmicas conjunturais sempre há e sempre haverá as decisões humanas e o desprendimento dos homens, a sua energia ou passividade, a sua imaginação ou imobilismo. A sociedade moderna foi fundada em iniciativas responsáveis e racionais, em que uma mentalidade economicamente ativa é catalizadora de algo que se desenvolvia há séculos.
A sociedade de confiança
A sociedade da confiança traz uma valorização moral do desenvolvimento, demonstrando que ele não vem de um acontecimento exterior, mas de uma disposição interior. O desenvolvimento é como um combate dentro de cada um de nós, como forma de substituir a resignação, pela energia, a rotina, pela invenção. A sociedade de confiança é aquela em que o ethos da confiança está no interior das pessoas, das empresas e da sociedade. Não há empresas sem empresários, e não há cooperadores, nem empresários, sem o ethos da confiança.
Ainda que Nietzsche pondere que “uma crença forte demonstra apenas a sua força, não a verdade daquilo em que se acredita”, o dicionário da língua portuguesa Houaiss define confiança como “uma crença de que alguma coisa sucederá bem”. O fato é que o desenvolvimento surgiu no mundo quando se venceu a fatalidade das circunstâncias, o peso da conjuntura externa ou de qualquer outro fator inibidor. O desenvolvimento apareceu com a autonomia do indivíduo, com o protagonismo que o colocou no centro da vida social junto à sua responsabilidade. Porque, enfim, o que move uma sociedade é o homem centrado em si, no caminho da construção de um mundo em que a satisfação das suas necessidades materiais e o desenvolvimento das suas aspirações naturais possam beneficiar a si e aos outros com progressos constantes. Como nos ensinou Adam Smith, há uma mão invisível que faz com que o benefício individual, leve aos benefícios de toda a sociedade.
[1] Etologia é o estudo dos comportamentos e das mentalidades das diferentes comunidades humanas, na medida em que fornecem fatores de ativação ou inibição em matérias de trocas e de inovação.
[2] Santo Agostinho – O Livre Arbítrio, Faculdade de Filosofia, Editora Braga – 1986
“Mariana Peringer é graduada em economia com especialização em psicanálise, empreendedora na Funcional Fight Club, adota causas privadas no terceiro setor e é entusiasta das ideias liberais”.