A alta do dólar no Brasil é um alerta de que a Argentina fica logo ali
outubro 2, 2020Em 2011, o repórter argentino Daniel Iglesias, do programa CQC, desembarcou em São Paulo para gravar uma matéria inusitada. Na Avenida Paulista, Iglesias perguntou aos paulistanos qual era cotação do dólar. O resultado? Praticamente ninguém sabia responder.
De volta a Buenos Aires, a mesma pergunta foi feita aos portenhos, que tinham a cotação na ponta da língua. No comércio local, os vendedores não apenas sabiam a cotação, como aceitavam ser pagos em dólar. Algo estranho por aqui, quando o repórter tentou fazer o mesmo.
A moral da história, como você já deve ter imaginado, é que a relação de ambos os países com a moeda norte-americana é bastante diferente. Como diz uma antiga piada (sem graça, eu sei): o peso é a moeda do governo argentino, mas o dólar é a moeda dos argentinos.
As razões para isso não chegam a espantar. Como o Brasil ou o México, a Argentina foi um país dependente do dólar durante boa parte do século 20. Com uma economia baseada na exportação de commodities como soja, trigo e carne, o país necessitava de dólares para manter sua economia girando e comprar bens do exterior.
Mas essa relação nunca foi fácil. Afinal, os preços destas commodities não são definidos por quem as produz, o que torna esses países mais vulneráveis.
Bastou, por exemplo, que o Banco Central americano aumentasse sua taxa de juros para conter a inflação no início da década de 1980, para que um efeito dominó se desencadeasse sobre a América Latina.
Com crescimento quase nulo, inflação galopante e calotes na dívida, os países da região, o Brasil entre eles, passaram anos tentando se reorganizar economicamente.
Em 1992, dois anos antes de o Brasil lançar seu Plano Real, os argentinos tiveram seu projeto econômico bem sucedido, o Plano Cavallo, que leva o nome de seu criador, o então ministro da economia Domingo Cavallo.
O plano fez os órgãos internacionais, como FMI, tratarem a Argentina como a queridinha da região. Enquanto o Brasil definhava com os Planos Collor 1 e 2, e lutava para sair das cordas, os argentinos organizaram a casa.
Um peso passou a valer um dólar, tal como ocorreria aqui. A razão para isso é que, ao criar uma conversibilidade, a inflação no país tende a diminuir, por se alinhar à inflação americana e aos preços internacionais.
O problema, é claro, é que a Argentina, como o Brasil, não imprime dólares. Isso torna o país bastante vulnerável a choques externos. Se você ainda se lembra, nos anos 1990 esses choques foram muitos, e vindos de todos os cantos.
Em 1995, uma crise abalou o México, criando o “Efeito Tequila”. Em 1997 e 1998, foi a vez das cruzes na Rússia e nos países asiáticos. E, em 1999, a crise brasileira.
É aí que o caminho dos dois países começa a se separar.
Apesar de o Brasil ter implementado o Plano Real cerca de dois anos depois do plano argentino, nossa crise chegou cerca de dois anos antes do que a de nossos vizinhos.
O caminho que tomamos dali em diante é parte razoável da explicação sobre o porquê de as pessoas entrevistadas pelo repórter do CQC argentino não saberem, ou até mesmo não se importarem com a cotação do dólar.
Em 1999, o Brasil implementaria o chamado Tripé Macroeconômico. Uma política, que como o nome já indica, consiste em três princípios: câmbio flutuante e controlado por oferta e demanda; superávit primário (economia de dinheiro do orçamento para pagar os juros da dívida e mantê-la sob controle); e metas de inflação.
O Banco Central brasileiro passou a determinar um limite aceitável para a inflação. Para fazer isso, mantinha os juros altos.
Essa nova política econômica brasileira foi duramente criticada por quem achava que os juros básicos nas alturas drenavam recursos que poderiam ser alocados em investimentos. Isso, de fato, é verdade. Mas a ideia era que, quando as três metas estivessem alinhadas, os juros cairiam de maneira racional.
E foi o que ocorreu. Durante o governo Lula, que passou de crítico ferrenho a um dos presidentes que mais a seguiu, os juros caíram de 23% para 13%, com a inflação sob controle (apesar de, em dado momento, o governo petista ter sido mais tolerante com a inflação).
Para complementar (e premiar o rigor brasileiro), o ano de 2001, quando Argentina entraria em crise, foi também marcou a entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), promovendo inúmeros acordos comerciais que a levariam para o posto de grande parceiro comercial de boa parte das economias da América Latina.
A enxurrada de dólares que fluiu para os países emergentes, como Brasil e Argentina, durante os anos 2000, fez a cotação da moeda se manter relativamente baixa. Por aqui, os dólares extras foram massivamente utilizados para converter a dívida externa em interna. Emitimos títulos em reais, e deixamos de dever em dólares.
Os argentinos, porém, continuam com sua dívida em dólar.
O motivo para isso é a visão de longo prazo. No Brasil, os juros estavam mais altos, o que dá ao investidor estrangeiro um prêmio substancial para comprar dívidas em reais. Na Argentina, os juros reais (quando você desconta a inflação) seguiram baixos, ou até mesmo negativos.
Nos anos 2000, os argentinos viram sua economia crescer a taxas de até 8% ao ano, e seguiram empolgados com esse cenário. Foram não apenas lenientes com a inflação, como deliberadamente mascararam o índice.
O governo de Néstor Kirchner iniciou um processo de intervenção no instituto de dados que aufere a inflação, forçando a divulgação de números mais baixos do que os reais.
Mas, afinal, o que isso tudo tem a ver com a cotação atual do dólar?
Como você já deve ter percebido, o rigor com que tratamos o orçamento durante esse período foi fundamental para garantir que a cotação da moeda americana continuasse baixa e os juros pudessem cair.
Porém, isso não ocorre no Brasil desde 2004. Mas os efeitos não chegam a ser tão devastadores quanto no país vizinho.
Tivemos uma inflação maquiada, ainda que ela nunca tenha saído da meta, com exceção de um ano (2015).
O resultado é que nossa taxa de câmbio oscilou entre R$ 1,80 e R$ 3,50.
Ficamos assustados quando a crise política levou o câmbio para R$ 4,00 em janeiro de 2016. Mais assustados até do que estamos hoje, com o dólar valendo R$ 5,60.
Desde janeiro deste ano, entretanto, o dólar já saiu de R$ 4,02 para R$5,60, chegando a atingir os R$ 5,90. O que exatamente está acontecendo?
Uma das razões óbvias é o chamado carry trade, um termo técnico para a seguinte situação: se um investidor estrangeiro capta dinheiro lá fora, a juros de 1% ao ano, para investir no Brasil, significa que ele espera receber aqui 1% mais um prêmio que compense o risco do país.
Ocorre que nossa taxa de juros está próxima de zero. Afinal, ela é praticamente igual à inflação. Ainda que ele capte dinheiro a custo zero, não teria qualquer ganho significativo colocando recursos aqui.
A pergunta é simples: você emprestaria dinheiro a um governo que há seis anos não consegue pagar as próprias despesas? A resposta também é simples: não.
Investidores estrangeiros já retiraram R$ 88 bilhões do Brasil neste ano, levando a uma alta expressiva na cotação da moeda americana.
No caso argentino, a situação é ainda mais dramática. O peso saiu de AR$ 4,3, em 2011, para AR$ 145, neste ano, com a inflação galopante.
Mesmo com juros absurdamente altos, como os 43% em 2019, foram incapazes de atrair dólares para a Argetnina. Afinal, se a inflação está em 47% e os juros em 43%, você está perdendo dinheiro ao fazer um empréstimo ao governo argentino.
Sem conseguir se financiar internamente, e com acesso escasso aos dólares, os argentinos apelaram para o financiamento do governo via Banco Central, o popular “imprimir dinheiro”.
No Brasil, a prática é proibida. Faz parte das nossas reformas lá de 1999, ou mais precisamente, de 2001, quando a Lei de Responsabilidade Fiscal proibiu o governo de financiar seus gastos com dívida.
O que pode ocorrer com o Brasil neste cenário? Com juros tão baixos, a capacidade do governo de se financiar internamente é cada vez menor. A curva de juros longos, aqueles que se espera receber em 2026 por exemplo, já aponta para 6-7%.
Na prática, o caminho mais lógico para o Brasil é aumentar os juros, contendo a inflação e garantindo uma continuidade no financiamento da dívida, sem que a moeda brasileira entre em uma espiral negativa.
Porém, há um outro fator relevante neste momento. Nossa dívida está se elevando muito rapidamente, em função dos gastos para apoiar famílias e empresas durante a pandemia.
Há a expectativa de que ela chegue a 100% do PIB em um ou dois anos.
Considerando que nossa poupança é baixa, assim como nosso estoque de riqueza, isso significa que teremos de desviar recursos de investimentos do setor privado para garantir a dívida.
A experiência de 1999 nos mostra que esse caminho é apenas parte daquilo que terá de ser feito. O mais relevante será garantir que a dívida e os juros possam cair novamente de maneira organizada.
Sem cuidarmos de reformas que organizem as contas públicas, dêem previsibilidade aos custos do governo e criem um caminho para colocar ordem na casa, as coisas podem sair de controle muito facilmente.
A razão para ainda estarem sob algum controle encontra-se justamente em uma destas reformas, aprovada em 2017: o teto de gastos.
O teto garante previsibilidade no jogo. Cria uma âncora para as expectativas sobre o futuro de juros, dívida/PIB e outros indicadores fundamentais para basear os investimentos e o crescimento do país.
Não é coincidência, portanto, que o câmbio e os juros tenham explodido nesta semana, quando a possibilidade de furar o teto foi cogitada com a contabilidade criativa para bancar o Renda Cidadã.
Nos próximos anos, podemos repetir a nós mesmos. Promover reformas e gerar confiança na nossa economia, como em 1999, ou seguir por um caminho mais fácil e voltarmos ao nosso passado não muito distante de pouco apreço pela inflação e o controle de gastos.
Aprender com a história é custoso, mas muito menos doloroso do que aquilo que poderemos vivenciar se preferirmos ignorá-la.